ReproduçãoRicardo Barros com Bolsonaro em tempos de alegria: hoje o ambiente é de tensão de parte a parte

O homem-bomba

Amigo do peito de Jair Bolsonaro, Ricardo Barros se vê ainda mais atolado no escândalo da compra de vacinas e passa à condição de aliado capaz de implodir o presidente
02.07.21

Ricardo Barros é o típico profissional da política. Capa-preta do Centrão na Câmara, o líder do governo gosta de se apresentar como “político de resultados”.  “Eu faço acontecer e cumpro o que prometo”, alardeia. Devido à capacidade de trocar rapidamente de casaca para se adaptar ao figurino do presidente de turno, o parlamentar conseguiu a proeza de ocupar postos estratégicos nos últimos cinco governos.

Em 2016, quando Barros foi alçado pelo então presidente, Michel Temer, ao comando do Ministério da Saúde, o ínclito Paulo Maluf quis fazer troça, mas acabou descrevendo o colega de partido talvez com mais propriedade do que ele próprio: “Barros não é médico, mas é alguém que entende de operações”. O perigo é o de que os efeitos colaterais dessas intervenções nem sempre cirúrgicas possam complicar a vida dos que topam se associar a alguém do naipe de Barros.

É exatamente o que ocorre agora. Ao mover mundos e – ao que tudo indica – fundos para que a vacina indiana Covaxin fosse adquirida pelo Ministério da Saúde, Barros virou um problemão para Jair Bolsonaro. Primeiro porque rifar o líder do governo na Câmara significa arrumar briga não só com ele, mas com o Centrão, bloco de partidos fisiológicos que hoje dão sustentação ao Palácio do Planalto no Congresso. Depois, porque o deputado sabe demais e pode, se perceber que será abandonado à própria sorte, implodir o que resta da administração Bolsonaro.

Hoje, o governo se esgueira como se andasse sobre um campo minado. O escândalo do mensalão do PT ensinou que não convém deixar quem sabe demais ao relento. Mas blindar Barros indefinidamente significa manter a bomba na antessala do gabinete presidencial.

Na terça-feira, 29, Crusoé revelou um dos mais importantes lances do Covaxingate até agora. Depois de se reunir pessoalmente com Bolsonaro para informá-lo sobre as suspeitas de corrupção na compra da vacina, o deputado Luis Miranda, até dias atrás aliado de primeira hora do governo, ouviu de um conhecido lobista de Brasília uma proposta indecente: se topasse “ajudar” a destravar o processo da Covaxin, levaria 6 centavos de dólar por cada dose da vacina que fosse comprada pelo governo – o contrato da Precisa com o ministério somava 1,6 bilhão de reais. Como seriam 20 milhões de doses, a “propina” corresponderia a algo próximo de 6 milhões de reais. Àquela altura, a aquisição da Covaxin estava atravancada no Ministério da Saúde porque o irmão de Miranda, Luis Ricardo Miranda, funcionário de carreira da pasta, havia detectado irregularidades no processo.

O lobista Silvio Assis é flagrado, em 2017, levando “parceiros” ao Ministério da Saúde: acesso privilegiado a Ricardo Barros
A oferta foi feita ao deputado pelo lobista Silvio Assis ao final de um convescote que contara com a participação de Ricardo Barros. O encontro foi na casa do lobista, no Lago Sul de Brasília. Silvio Assis e Ricardo Barros são grudados há pelo menos uma década. Ultimamente, os dois estavam engajados em favor da empresa Precisa Medicamentos, intermediária da venda da Covaxin para o governo.

À CPI da Covid, depois de muito esforço dos senadores, Luis Miranda já havia revelado na semana passada que Ricardo Barros era uma das figuras ocultas por trás da operação Covaxin. O deputado disse ter ouvido do próprio presidente, na reunião em que denunciou as suspeitas em torno do processo, que se tratava de um esquema de Barros. Bolsonaro teria dito, ainda, segundo o deputado: “Se eu mexo nisso aí já viu a m… que vai dar”. Na ocasião, o presidente prometeu que acionaria a Polícia Federal para apurar as suspeitas, mas nenhuma investigação havia sido aberta até a semana passada.

A trama já tinha virado um problema para Jair Bolsonaro por ele não ter tomado providências imediatas ao ouvir o relato de Luis Miranda – para um agente público, deixar de agir diante de evidências de crime configura crime de prevaricação. Dentro desse problema, porém, há um outro: por que, afinal, Bolsonaro não agiu? Foi para proteger Ricardo Barros ou haveria algo mais a esconder? Barros, evidentemente, tem a resposta – e, como é comum nessas situações, se se sentir abandonado pode abrir a boca e comprometer o presidente.

Bolsonaro sabe disso, e justamente por essa razão que ele tem mostrado cuidado desde que o escândalo estourou. Até esta quinta-feira, 1º, Ricardo Barros seguia líder do governo. Somou-se à crise a aparição de um cabo da Polícia Militar que circulou por Brasília como representante de uma empresa interessada em vender vacinas para o governo e disse, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo (leia mais em outra reportagem desta edição), ter ouvido de um funcionário do Ministério da Saúde, durante jantar em um shopping, um pedido de propina de 1 dólar por cada dose a ser fornecida. O tal funcionário, Roberto Dias, tem ligação antiga com Ricardo Barros. Ele foi demitido. Todas das demais indicações do líder do governo, porém, seguem intactas até o momento, em mais um sinal de que se tratou apenas de uma operação emergencial de contenção de danos.

A associação da palavra “propina” ao governo no noticiário – e o que é mais grave, vinculada à compra de vacinas em meio a uma catástrofe sanitária – agravou o quadro. No Planalto, os articuladores políticos sabem que o ambiente é inflamável e que qualquer movimento em falso pode fragilizar ainda mais o presidente. Interlocutores do Centrão já espalham à boca miúda que Barros, se for abandonado, tem condições de transferir a crise para o gabinete presidencial.

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressLuis Miranda: oferta de propina para não embarreirar negócio da Covaxin
O silêncio de Bolsonaro guarda relação com o pavor que ele tem de ter sido gravado por Luis Miranda – em entrevista a O Antagonista, o deputado insinuou que teria como comprovar a conversa. “O presidente está acuado, nervoso. Sentiu o golpe. Conhecendo Miranda como conheço, ele tem a gravação. É preocupante”, comentou um vice-líder do governo em conversa com Crusoé. O presidente da CPI da Covid, Omar Aziz também não tem dúvidas de que a gravação existe, como disse ao site. Nesta semana, ex-aliados de Bolsonaro e partidos de oposição apresentaram um “superpedido de impeachment” amarrando todos os casos que o enredam em possíveis crimes de responsabilidade do inqulino do Planalto. O presidente da Câmara, Arthur Lira, que é quem tem poder para deflagrar ou não o processo de impeachment, por ora vai deixar o pedido em banho-maria. O cenário, no entanto, pode mudar a qualquer instante.

Aos 61 anos, Ricardo Barros cultiva o hábito de deixar um tabuleiro de xadrez de mármore verde e branco, as cores da bandeira paranaense, sobre uma mesa de reuniões de seu escritório em Maringá, cidade onde nasceu, debutou na política e da qual já foi prefeito. Para evitar que o escândalo lhe custe não só o posto de líder do governo como até mesmo o mandato – nesta semana, o PSOL pediu sua cassação no Conselho de Ética –, Barros entende que, a partir de agora, precisa atuar como um enxadrista, acomodando as peças de modo a evitar que seja ameaçado por um xeque-mate.

Desde a famosa reunião de 20 de março em que Miranda avisou Bolsonaro sobre os indícios de corrupção nas negociações para a compra da vacina indiana, o líder do governo já teve ao menos dez encontros com o presidente da República. Ele tem dito que em nenhuma dessas audiências Bolsonaro mencionou a denúncia ou o questionou sobre o assunto. Entre integrantes da base governista no Congresso, era grande a expectativa de que o deputado ao menos se licenciasse do posto de líder até a conclusão das investigações. Mas ele resiste à ideia. Em uma reunião nesta semana, disse que teria como se defender e pediu a confiança dos pares. O discurso foi repetido em conversas privadas.

Barros tem tentado mostrar-se firme diante do caso. Na quarta-feira, 30, surpreendeu colegas ao comparecer à cerimônia de posse do ex-ministro da Agricultura Francisco Turra como presidente do conselho de uma associação de produtores de biocombustíveis. Do mesmo modo, aparentando normalidade, escreveu em seu perfil no Twitter na quinta-feira, 1º, que havia participado de uma “excelente reunião” no Planalto sobre reforma administrativa. “A ministra Flávia Arruda (da Secretaria de Governo) reafirmou o apoio do governo à aprovação. Na próxima quarta-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, estará na comissão especial”.

No governo, há quem diga que a postura adotada por Barros nos últimos dias é um recado para Bolsonaro na linha do “não vou aceitar ser sacrificado” com facilidade. O presidente conhece o deputado desde os tempos em que foram colegas na Câmara e sabe que ele é capaz de desferir golpes abaixo da linha da cintura. Em setembro do ano passado, antes de ser catapultado à liderança do governo na Câmara, Ricardo Barros elevou a voz em uma reunião da bancada do Paraná com o então ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, hoje chefe da Casa Civil. “O presidente não pode demitir o deputado, mas o deputado pode demitir o presidente”, disse. “A palavra final é nossa. Ele é que tem que querer estar de bem conosco. Se ele não quer, está ótimo para nós”, acrescentou.

Kevin David/A7 Press/FolhapressKevin David/A7 Press/FolhapressAmpolas de Covaxin: escândalo preocupa Jair Bolsonaro
Outro episódio envolveu o próprio Bolsonaro. No longínquo ano de 1999, Barros chegou a ser acusado por ele de chantagem. No início daquele ano, os dois congressistas e então colegas de partido entraram em conflito sobre a votação de uma medida fiscal de interesse do governo Fernando Henrique Cardoso, em seu segundo mandato. Estava em pauta a cobrança da contribuição previdenciária de aposentados. Barros teria pedido e chantageado Bolsonaro para que se ausentasse da votação. Na época, ele negou as acusações, enquanto Bolsonaro dizia ter gravações para comprovar a coação. A turma do “deixa disso” entrou em cena e o assunto foi esquecido.

A interlocutores, Barros tem dito que irá “de cabeça erguida” à CPI, que nesta semana aprovou a sua convocação – o depoimento chegou a ser agendado para a próxima semana, mas foi desmarcado e, até esta quinta-feira, ainda não tinha nova data definida. Apesar de ser um político acostumado aos códigos particulares de Brasília, e de saber como poucos a maneira como funciona uma CPI, falar à comissão não será uma missão trivial.

São muitos os indícios contra o deputado do Centrão. Foi ele quem apresentou a emenda permitindo a compra da Covaxin e pressionou a Anvisa para acelerar sua liberação. Seus apadrinhados estavam aboletados em postos-chave da operação. O dono da Precisa Medicamentos, Francisco Maximiano, é seu antigo parceiro de negócios. Max, como é conhecido, figura como sócio de uma empresa que em 2017, quando Barros era ministro da Saúde no governo de Michel Temer, vendeu remédios ao ministério e não os entregou. O líder do governo virou réu no processo.

Para esclarecer as ligações entre o Ministério da Saúde, Barros e a Precisa, e esquadrinhar melhor a trama, os senadores montaram um robusto cronograma. Além do próprio Barros e do lobista Silvio Assis, os integrantes da CPI querem ouvir outros funcionários e ex-funcionários da pasta que de alguma forma lidaram com o processo de aquisição da Covaxin, finalmente suspenso nesta semana, após a avalanche de suspeitas. Os fios ainda soltos, acreditam os senadores, serão ligados pelo resultado das quebras de sigilo já aprovadas. Max, o dono da Precisa, também será ouvido.

Há um fardo adicional para Ricardo Barros. Para além dos casos atuais, ele terá sua trajetória de envolvimento em suspeitas de desvios revisitada pela CPI. A lista é extensa. Um dos pontos sensíveis está justamente na parceria que o deputado costuma fazer com lobistas. O próprio Silvio Assis, o amigo dele que aparece no relato de Luis Miranda como o autor da oferta de propina em troca de ajuda para liberar a compra da Covaxin, é um dos que têm histórias pretéritas de rolos que o envolvem. No período em que Barros era ministro, Assis tinha livre acesso a seu gabinete e costumava levar a tiracolo empresários interessados em facilitar negócios na Saúde. O lobista atribuía o fácil acesso ao então ministro à estreita amizade que eles cultivavam. E era estreita mesmo. Ao mesmo tempo em que atuava para azeitar negócios no ministério, Assis adulava Barros com presentes – como exclusivas abotoaduras Mont Blanc e gravatas – e outras graças.

Reprodução/Justiça FederalReprodução/Justiça FederalRoberto Bertholdo: mais um lobista parceiro de Barros
Outro lobista que abria portas para empresários no gabinete de Ricardo Barros é Roberto Bertholdo, dono de uma extensa ficha corrida, que, assim como Silvio Assis, inclui passagem pela cadeia. Também quando Barros era ministro de Temer, Bertholdo costumava receber em seu escritório representantes de empresas que precisavam destravar processos na pasta. A pelo menos um deles, que relatou o caso em detalhes a Crusoé sob a condição de que seu nome fosse preservado, o lobista deu seu preço: 10% em troca da assinatura de um contrato de venda de medicamentos. Bertholdo participava de reuniões no gabinete de Barros para tratar dos mesmos assuntos que antes eram discutidos com ele, na base da informalidade. A depender do rumo dessas conversas informais, o humor e a disposição do então ministro para acolher os pedidos dos empresários mudavam.

O desenrolar da crise nos próximos dias ditará os rumos das investigações que enredam Ricardo Barros. Como esse é um daqueles momentos políticos em que se vive um dia por vez, é arriscado fazer prognósticos. Ao menos uma coisa é certa: quanto mais encrencado estiver Barros, pior será para Bolsonaro. Os dois – o presidente e seu ainda líder na Câmara – são sócios políticos no escândalo.

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