DivulgaçãoUm secretário do Ministério da Saúde foi apresentado pelo lobista como canal para destravar liberação de verbas

A crueldade da corrupção

A desfaçatez dos corruptos vai além da tentativa de faturar com vacinas em plena pandemia. Reunimos casos de desvios na compra de remédios para crianças com câncer e portadores de doenças raras
02.07.21

A pandemia não precisava ter ultrapassado a trágica marca de meio milhão de mortos para chocar o país. Os sucessivos desmandos cometidos por quem deveria trabalhar para salvar vidas, as teses negacionistas difundidas pelo próprio presidente da República e seus apoiadores, a propaganda de remédios ineficazes e a demora na busca por vacinas potencializaram a catástrofe e têm causado indignação em uma parcela relevante da sociedade. Mas não é só. A revolta se amplia quando à crise sanitária se soma outro flagelo bastante conhecido dos brasileiros, o da corrupção. As recentes denúncias de propina envolvendo a compra da vacina indiana Covaxin pelo Ministério da Saúde expuseram a face mais cruel desse mal: a vantagem pessoal dos poderosos em cima do sofrimento alheio.

O escândalo das vacinas não é um caso isolado. Depois de quatro anos comprando um medicamento produzido por uma empresa japonesa em parceria com um laboratório alemão, para tratar um tipo de leucemia predominante em crianças e adolescentes, em 2016 o Ministério da Saúde decidiu trocar de fornecedor. Questionava-se à época o custo elevado do remédio importado e distribuído pelo SUS, cerca de 170 dólares a unidade, e o fato de a compra ser feita sem licitação, um expediente usado para casos em que há apenas um único produto disponível ou acessível no mercado. Aparentemente a motivação era republicana, de quem está preocupado com o bom uso das verbas públicas.

Mas o que ocorreu em seguida alarmou a comunidade médico-científica. A partir de um bem-sucedido lobby, o ministério decidiu comprar um desconhecido remédio produzido por um laboratório chinês e que seria distribuído no Brasil por uma empresa sediada no Uruguai. Contrariando um parecer técnico do Departamento de Assistência Farmacêutica do ministério, a pasta autorizou a compra do medicamento de forma emergencial. O negócio era adornado por um bonito discurso de que possibilitaria uma economia significativa para o governo – o custo unitário era de 38 dólares –, mas representava um alto risco à vida dos pacientes que receberiam o remédio.

A nova fórmula destinada ao tratamento de leucemia linfóide aguda, também chamada de LLA, era considerada uma droga química, e não biológica, e não tinha licença para comercialização nem na própria China, onde os testes clínicos só haviam sido feitos em roedores e macacos. O remédio apresentava 398 substâncias contaminantes – o que era comprado antes tinha apenas três –, o que revela um elevado grau de impurezas que pode provocar complicações graves em quem o consome. A falta de evidências que garantissem a segurança e a eficácia do produto, além de dúvidas sobre a idoneidade do fabricante e do distribuidor, levaram entidades como o Conselho Federal de Medicina a acionar a Justiça.

O Ministério Público Federal investigou o caso e recomendou que o Ministério da Saúde suspendesse a distribuição do medicamento chinês e retomasse a aquisição e a distribuição do produto usado anteriormente, que era reconhecido pela Organização Mundial da Saúde e registrado em nove países, entre eles Estados Unidos, Canadá e França.

O Ministério da Saúde chegou a preparar um dossiê esclarecendo que o produto chinês era mais barato e a decisão levava ao risco de desabastecimento no SUS. Os argumentos não foram suficientes e a Justiça ordenou a retirada do remédio de circulação. Para além da discussão científica, havia uma grave suspeita de corrupção por trás da troca de produto. O contrato para a aquisição do novo medicamento foi assinado com uma empresa uruguaia que, no Brasil, tinha um escritório de fachada em Barueri, na Grande São Paulo, e era registrado em nome de duas venezuelanas. O procurador da firma era um homem que havia trabalhado para uma empresa metida em rolos na área de trens – a mesma por onde haviam passado, pouco antes, alguns dos burocratas do ministério indicados pelo Centrão que estavam chancelando o novo contrato.

Em 2017, o ministério cometeu outra barbaridade que, segundo o Ministério Público Federal, colocou em risco a vida de pacientes com doenças raras. Naquele ano, a pasta assinou um contrato de 19,9 milhões de reais para a compra de medicamentos oferecidos pela Global, que vem a ser sócia da Precisa, intermediária do atualíssimo processo de compra da vacina Covaxin. A empresa venceu a licitação, foi autorizada a receber o pagamento antecipadamente, mas nunca entregou os remédios. Assim como ocorreu com a Covaxin neste ano, o ministério pressionou a Anvisa para driblar os questionamentos da agência sobre a capacidade da empresa de entregar os medicamentos que estava oferecendo. Nas contas do MPF, a falta do remédio na rede pública ocasionada pelo rolo levou à morte de 14 pacientes, além de ter comprometido o tratamento de centenas de pessoas. Até hoje o dinheiro não foi devolvido pela Global, cujo dono, Francisco Maximiano, deverá comparecer à CPI da Covid nas próximas semanas para ser interrogado sobre o negócio da Covaxin.

Curiosamente, o ponto de interseção entre os dois casos, o da fórmula chinesa e o do remédio que a Global não entregou, é o atual líder do governo na Câmara, Ricardo Barros. No processo em que é réu por improbidade administrativa ao lado da Global de Francisco Maximiano, o deputado chegou a afirmar que aquele foi um episódio isolado “de insucesso” – o que não é verdade. A troca do medicamento japonês que era distribuído para o tratamento de crianças com leucemia pelo concorrente chinês que nem havia sido autorizado ainda pelas autoridades sanitárias também se deu no período em que Barros era ministro. Àquela altura, ele tinha como auxiliares homens de confiança de seu partido, o Progressistas, que antes haviam passado, também por indicação da legenda, por postos-chaves na CBTU, a estatal federal de trens urbanos. A corrupção, ao contrário do que as excelências fazem crer, não tem nada de abstrato. Sim, ela mata.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO