Flickr/Prefeitura de PelotasVacina evitou milhares de mortes, mas eficácia relativa exige providências adicionais dos governos

O dilema da Coronavac

Procuramos saber qual é o plano das nossas autoridades para evitar que a baixa eficácia da vacina mais aplicada nos brasileiros até agora gere uma nova onda de contágios. A resposta é preocupante
25.06.21

A Coronavac trouxe um ganho inestimável para o combate à Covid no Brasil. Fabricada aqui pelo Instituto Butantan, a vacina do laboratório chinês Sinovac foi a primeira a ser disponibilizada no país, quando outros imunizantes, pela inércia do governo federal, ainda estavam bem longe do braço dos brasileiros. As doses evitaram que milhares de idosos e pessoas com comorbidades fossem internadas e morressem intubadas nas UTIs dos hospitais.

Com a campanha de imunização em seu quinto mês e novos estudos científicos sendo divulgados, porém, um dilema se apresenta às autoridades: a mesma vacina que salvou milhares de vidas não tem se mostrado capaz de reduzir a transmissão e parece ser pouco eficiente entre idosos com mais de 80 anos.

Demonizar a Coronavac ou defendê-la a qualquer custo não trará nenhum benefício. Mas se torna imperiosa a necessidade de desenhar políticas sanitárias que levem em conta a baixa eficácia da vacina. Em vários países do mundo, o tema já vem sendo discutido e medidas já foram ou estão sendo implementadas neste momento – alguns governos que também adotaram a Coronavac já decidiram aplicar uma terceira dose, por exemplo, como forma de reforçar a proteção.

No Brasil, com o debate sobre a pandemia extremamente politizado, nenhum passo foi dado. Não há sequer estudos sendo feitos para descobrir qual é a melhor saída para evitar que as pessoas já vacinadas, ao voltarem à rotina acreditando estarem plenamente protegidas, acabem novamente expostas ao vírus. A seguir, listamos algumas informações essenciais para compreender o dilema.

O caso do Chile 

O Chile é um dos países que mais avançaram na vacinação. Cerca de 63% da população recebeu ao menos uma dose e 51%, a segunda. De todas as doses aplicadas, 71% foram da Coronavac. A situação sanitária no país, contudo, é alarmante. A taxa de novos casos está em 36 por 100 mil habitantes, similar ao pico da pandemia, no final de março deste ano. Das 16 regiões do território chileno, apenas três estão com uma ocupação de UTIs menor que 90%.

As primeiras explicações para o problema culpavam o afrouxamento precoce das medidas de distanciamento social e a chegada de novas variantes. Mas um terceiro fator começou a ganhar força nesta semana, depois que o Chile foi incluído em um grupo de países díspares, ao lado da Mongólia, das Ilhas Seychelles, do Bahrein e da Turquia. Todos eles basearam suas campanhas de vacinação em grande parte nas vacinas chinesas Sinovac e Sinopharm e observaram uma subida dos casos diários recentemente. Nas Ilhas Seychelles, mais de 70% da população tomou uma dose e 60%, duas. De abril para maio, porém, o número de novos casos diários pulou de 50 para 400, para atualmente ficar na faixa de 150.

Uma das hipóteses para explicar esses novos casos é que essas vacinas, embora sejam eficientes para reduzir o número de internações e de mortes, não conseguiram reduzir a transmissão do vírus. Para que isso ocorresse, dizem especialistas, essas nações precisariam ter pelo menos 75% das pessoas imunizadas.

Sem impedir que o vírus siga se disseminando na população, o Chile está acumulando vários outros problemas. “Uma maior circulação do vírus continua produzindo muitos casos graves e óbitos, abarcando também pessoas jovens e com comorbidades”, diz o médico Juan Carlos Said, professor da Universidade do Chile e diretor da Fundação América Transparente. “Além disso, como o vírus continua se multiplicando a uma taxa elevada, a chance de que surja uma nova variante é maior.”

Flickr/Prefeitura de PelotasFlickr/Prefeitura de PelotasPonto de vacinação no Brasil: a taxa de transmissão segue preocupante

O problema brasileiro

O Brasil está bem atrás do Chile em porcentagem da população vacinada. Cerca de 32% dos brasileiros tomaram a primeira dose e 11%, a segunda. “É muito provável que, até atingir 75% de cobertura, o Brasil não consiga uma redução significativa de contágios, já que as medidas sociais para se precaver contra a infecção não estão sendo seguidas com muito rigor”, diz o imunologista Edécio Cunha-Neto, diretor do Laboratório de Imunologia Clínica e Alergias da USP.

Um ponto que deve ajudar aliviar a situação por aqui é que a porcentagem da população brasileira que tomou a Coronavac é de 47%. Levadas em conta as doses que devem chegar ao longo do ano, a participação da vacina no cômputo geral deverá ser de apenas 19% — como há outras fórmulas sendo administradas na população, portanto, o risco de se repetir aqui o quadro chileno é um pouco menor, o que não elimina o fato de que, se nada for feito, as pessoas que tomaram a Coronavac não estarão plenamente protegidas.

Arte: Rodrigo Freitas

A experiência de Serrana

O Instituto Butantan afirma que, com 75% da população-alvo imunizada, Serrana, a cidade do interior de São Paulo onde houve uma campanha massiva de vacinação com a Coronavac para mapear a eficácia do imunizante, registrou uma queda de 95% nas mortes por Covid, de 86% nas internações e de 80% nos casos sintomáticos.

Mas o boletim epidemiológico municipal indica que o vírus continua se alastrando, mesmo com 95% dos moradores imunizados. O pico de casos novos por mês foi de 706, em janeiro, antes de a vacinação em massa começar. Em maio, o total de novos casos confirmados foi de 333, maior do que o esperado. “Notamos uma pequena mudança no perfil dos casos. Estamos com uma procura maior de crianças (por centros de saúde), com um aumento dos casos positivos”, diz a secretária de Saúde do município, Leila Aparecida Gusmão.

O total de mortos por Covid chegou a 19 em março, a pior marca. No mês passado, ocorreram sete óbitos. 

A eficácia da Coronavac

Segundo um estudo clínico conduzido pelo Instituto Butantan, a eficácia da Coronavac é de 50,7% para casos leves, 83% para casos moderados e 100% para casos graves. No entanto, um estudo feito por pesquisadores do grupo Vebra Covid-19 (sigla para Vaccine Effectiveness in Brazil Against Covid-19), que inclui cientistas de vários países, mostrou uma eficácia média de 42% entre pessoas com mais de 70 anos. Dividindo os voluntários segundo a idade, o quadro fica mais preocupante. Entre os indivíduos de 75 a 79 anos, a eficácia foi de 49%. Para aqueles com mais de 80 anos, ficou em apenas 28%.

FlickrFlickrEm idosos com mais de 80 anos, eficácia da Coronavac é de 28%
Em nota enviada a Crusoé, o Butantan contestou os dados do estudo. “Cabe esclarecer que foram usados dados secundários e de qualidade duvidosa, além de baixo número amostral, sobre o percentual de casos positivos de infecção pelo coronavírus entre idosos com 80 anos ou mais vacinados com as duas doses”, diz o texto. O trabalho feito pelo Vebra Covid-19, porém, foi o maior já feito com pessoas com mais de 70 anos, ao incluir 15,9 mil voluntários desse grupo etário. É uma amostra considerável. No estudo clínico feito pelo próprio Butantan, apenas 1.260 pessoas com mais de 60 anos foram avaliadas.

O mecanismo de ação

Em laboratório, amostras de sangue de pessoas vacinadas com duas doses de Coronavac indicam que a vacina não foi suficiente para fazer o organismo reagir à cepa P1, de Manaus. Isso ocorre porque o mecanismo de ação do imunizante não passa pela produção de anticorpos neutralizantes, mas envolve outros sistemas, que ainda não são bem conhecidos. “As dúvidas sobre qual é o mecanismo também surgem quando se estudam outras vacinas que usam vírus inativados, como a da pólio e da hepatite A. Mesmo assim, essas vacinas provocam uma resposta satisfatória do organismo”, diz Daniel Bargieri, professor e pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e coordenador do Núcleo de Pesquisas em Vacinas.

É possível que o mecanismo de ação da Coronavac tenha relação com a dificuldade em conter o alastramento da pandemia no Chile e em outros países. Vacinas que usam RNA mensageiro, como as da Pfizer e da Moderna, estimulam o organismo a produzir um anticorpo específico contra a proteína Spike, usada pelo coronavírus para entrar nas células. Nas pessoas imunizadas com Coronavac ou com a vacina da Sinopharm, o processo é mais longo e complexo.

A terceira dose

O Instituto Butantan sustenta que nada indica, por ora, a necessidade de uma terceira dose de Coronavac. Contudo, em outros países que apostaram nas vacinas chinesas, com vírus inativado, algumas medidas já foram ou estão em vias de ser adotadas para reforçar a eficácia da vacina. Nos Emirados Árabes Unidos e no Bahrein, a terceira dose é uma realidade. Na Turquia, a dose de reforço deve começar a ser aplicada na população geral em julho. O presidente Recep Erdogan, de 67 anos, ganhou a sua. No Chile, é possível que a a aplicação da terceira dose comece em setembro.

No início de junho, o diretor da Sinovac, Ying Weidong, afirmou que uma terceira dose da vacina poderia multiplicar por dez a resposta de anticorpos no período de uma semana, ou por 20 em duas semanas. O resultado precisaria ser comprovado com mais pesquisas. “Não seria algo surpreendente. Vacinas que usam vírus inativados geralmente são dadas várias vezes. Na da pólio, por exemplo, são necessárias três doses, e ainda são dadas mais duas doses de reforço”, diz Bargieri, da USP.

ReproduçãoReproduçãoO presidente turco Recep Erdogan: terceira dose garantida

A combinação de vacinas

Administrar outra vacina em quem tomou duas doses de Coronavac também é uma hipótese plausível, embora ainda não existam estudos apontando quais imunizantes poderiam ser combinados com a fórmula chinesa. Para o médico infectologista Julio Croda, que integra o grupo Vebra Covid-19, uma combinação de vacinas pode ser vantajosa. “Estudos já mostraram que vacinas diferentes estimulam mecanismos distintos, garantindo maior proteção”, diz Croda.

Pesquisas combinando vacinas têm sido feitas na Espanha e no Reino Unido. Como surgiram casos de trombose com a AstraZeneca, alguns países europeus começaram a aplicar a vacina da Pfizer ou da Moderna em pessoas que tinham tomado  a primeira da AstraZeneca.

Combinar vacinas não é uma ideia nova, pois essa técnica já foi utilizada com outras doenças, como o ebola”, diz Alberto Borobia, diretor da unidade de pesquisas clínicas do Hospital Universitário La Paz, em Madri, que realizou o primeiro estudo combinando as vacinas. Todos os voluntários que receberam as duas doses, de AstraZeneca e Pfizer, exibiram anticorpos neutralizantes duas semanas depois. Eles também tiveram um aumento de quatro vezes na resposta de defesa celular.

Caberá a cada país decidir se é o caso de combinar vacinas, realizando ou não estudos prévios para medir os riscos envolvidos. “Essa é uma decisão de política sanitária. Países europeus fizeram a mistura de vacinas e não notaram problemas relevantes”, diz Antonio Carcas, professor de farmacologia da Universidade Autônoma de Madri, que também participou do estudo espanhol. “Mas acredito que o melhor para o Brasil seria fazer um estudo semelhante ao nosso, para avaliar a resposta imunológica e a segurança da combinação. Isso ajuda na tomada de decisões”, diz.

A solução

Recentemente, circularam rumores de que o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, estaria preocupado com a baixa eficácia da Coronavac em idosos e pensava em encerrar os contratos de compra da vacina. Nesta semana, Queiroga negou a informação. “Não há nenhum tipo de mudança de estratégia do Ministério da Saúde em relação a esse imunizante”, disse. “Essa vacina tem sido útil. Essa é a posição oficial do Ministério da Saúde até que exista algum dado científico que faça com que tenhamos uma posição diversa”.

Nos próximos meses, o debate sobre a Coronavac deve ganhar corpo. Entre a população, jovens e adultos que ainda não foram vacinados devem se proteger assim que essa possibilidade for oferecida. Todas as vacinas disponíveis no Brasil se provaram capazes de reduzir o risco de internação e de morte. Mas não basta. Se há meios de reforçar a proteção em faixas da população atendidas com uma vacina que tem sido útil para evitar o pior, mas não freia o contágio, é essencial que essa discussão seja feita de forma séria — e baseadas em estudos que, até o momento, não estão sendo feitos. As autoridades precisam se convencer, urgentemente, de que é preciso avaliar a questão a partir de dados científicos, sem viés político, de modo a ajustar a política sanitária, para o bem de todos.

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