RuyGoiaba

Moça, sei que já não é pura

25.06.21

Os discos que ouvimos na infância formam caráter. Como sou velho e anterior ao Balão Mágico e à Xuxa, meus greatest hits — ouvidos numa vitrolinha Philips com opções para 33, 45 e 78 rotações, que hoje deve ser vendida como vintage — eram coisas como A Bandinha da Turma da Mônica e a trilha sonora da versão nacional de Vila Sésamo. No caso do primeiro, confesso que me identifiquei por um breve período com a música do Cascão (“se a água é fria eu tenho medo, se a água é quente eu nem quero saber”), até minha mãe acabar com essa palhaçada de entrar no chuveiro sem me molhar. E Vila Sésamo é útil até hoje: recorro à música do abecedário, composta por Marcos Valle, toda vez que preciso conferir se o P vem mesmo depois do M na ordem alfabética.

Mas o disquinho que mais me marcou foi um que adaptava fábulas de La Fontaine — décadas antes de eu aprender alguma coisa de francês e conseguir ler os versos originais, em alexandrinos rimados, do grande escritor do século XVII. A minha favorita, de longe, era O Velho, o Menino e o Burro. Estão o velho e o menino puxando um burrico, que planejam vender na feira, e um passante comenta que é ridículo os dois andarem a pé quando poderiam ir montados e descansados. Os dois sobem no burrico e logo alguém se compadece do bicho. O menino então desce, fica a pé, o velho continua montado: aparece outro dizendo oh, que absurdo, o velho todo pimpão e o menino se esfalfando. Trocam de posição: “Olha só que garoto folgado, confortável no burro enquanto o velho se cansa!”. Por fim, decidem os dois carregar o animal nas costas, e a opinião pública não perdoa: “Olha lá os dois burros carregando um terceiro nas costas!”.

Na verdade, o original do La Fontaine (Le Meunier, son Fils et L’Âne) começa com a dupla carregando o asno, o que para mim dilui um pouco o efeito dramático da moral da história. Seja como for, lembro dessa fábula sempre — e me lembrei de novo nesta semana, quando aquele tsunami de comentários cretinos que se convencionou chamar de “opinião pública” dedicou sua atenção às novas latas de Leite Moça, lançadas para comemorar o centenário do produto no Brasil.

Se vocês não souberam da história, explico: a Nestlé trocou a tradicionalíssima moça das latas de leite condensado por ilustrações de “mulheres reais”, que utilizam o Leite Moça no seu dia a dia etc. Rendeu pelo menos uma boa piada — alguém no Twitter escreveu que as latas ficaram parecidas com os maços de cigarro, que mostram as consequências do uso do produto —, mas, fora isso, é difícil imaginar algo que seja menos relevante para a vida das pessoas. Certo?

Errado: nas redes, nada é tão irrelevante que não possa ser objeto de polêmica. Direitistas, por exemplo, ficaram irritadinhos com a campanha “lacradora” da Nestlé (só faltou Jair Bolsonaro se manifestar dizendo que não vai passar mais isso daí no pão, talquei?). Mas veio da esquerda a melhor peça de humor involuntário: o site do PT publicou um artigo dizendo, a sério, que a mudança do rótulo do Leite Moça evidenciava uma “visão utilitarista da pauta feminista”, promovia a “invisibilidade da mulher do campo” e escondia a “lógica nefasta do marketing de alimentos ultraprocessados”. Não consigo imaginar nada MENOS parecido com uma camponesa brasileira, ou uma sem-terra filiada ao MST, do que a moça do Leite Moça, mesmo na versão modernizada do desenho mais recente. Talvez tenha faltado à Nestlé ser mais inclusiva e colocar uma imagem do Lula entre as “mulheres reais” homenageadas: como sabemos, ninguém pode ser mais mulher trans negre não-binárie e do campo que o chefão petista.

Wando, esse grande pensador brasileiro, diria que a moça do Leite Moça já não é pura: é pura semiótica, e a moçada anda atribuindo a ela os significados mais delirantes (o que nem sempre tem a ver com o alto consumo de leite condensado por parte dos usuários da erva venenosa). O melhor que a Nestlé — ou qualquer um de nós — faz nesse caso é mesmo dar de ombros para a tal opinião pública: do contrário, como na fábula, vamos todos acabar carregando o burro nas costas. Lembrem-se sempre das sábias palavras de Carla Perez, a pessoa que melhor resumiu o ensinamento da história de La Fontaine (cito ipsis litteris): “Se nem Jesus Cristo agradou todo mundo, não é eu que vai agradar”.

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A GOIABICE DA SEMANA

O jornal mineiro O Tempo informa que Aécio Neves, que governou um dos maiores estados do Brasil e recebeu 51 milhões de votos numa eleição presidencial, apresentou na Câmara um projeto para que a cidade de Lagoa Dourada seja consagrada como a capital nacional do rocambole. E vocês, em vez de aplaudir o extraordinário senso de prioridade do tucano, ainda vêm me dizer que no Brasil não há estadistas. É muito complexo de vira-lata, francamente. (Fique à vontade para inserir aqui seu trocadilho com “Aécio” e “enrolado”.)

Pedro Ladeira/FolhapressPedro Ladeira/FolhapressAécio pensando em quem é mais enrolado —ele ou o rocambole de Lagoa Dourada

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