MarioSabino

Festa de 60 anos

25.06.21

Divirto-me com a ideia de convidar todos os meus desafetos — ou inimigos mesmo, em alguns casos — para uma grande festa em comemoração aos meus 60 anos em 2022 (grande festa que não ocorrerá). Ela certamente ficaria lotada, se houvesse quem concordasse em ir a uma festa de quem não gosta ou até odeia.

Esforcei-me bastante para conquistar alguns desses desafetos; em relação a outros, não foi preciso muito esforço. Existem antipatias naturais que se impõem a quaisquer coincidências de gosto ou ideias. Quanto às simpatias que se esvanecem, constato a verdade do lugar-comum: os piores desafetos são os ex-amigos. Ex-amigo é que costuma ser para sempre. Felizmente, como não sou homem de muitos amigos, tenho poucos ex-amigos. Na condição de ex-amigo, contudo, contrario o clichê e sou efêmero. Eles simplesmente deixam de existir para mim. Para ser sincero, é assim em relação a todos os meus antípodas. Talvez por desvio psicológico (longe de mim achar que tenho superioridade moral), não nutro rancores eternos — o que não significa que sairia abraçando por aí quem me odeia. Enemies, enemies, will never be friends, como canta a Charlotte Gainsbourg. É pela ausência de rancores eternos que posso me divertir com a ideia de convidar todos os meus desafetos para uma grande festa de 60 anos.

Na minha lista de convidados, embatuquei com um nome: Raduan Nassar. Eu adoro o Raduan. Nutro por ele uma admiração imensa. Com apenas dois livros, Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera, ele chegou àquele lugar de nome pavoroso: a glória literária. Como classificar o Raduan? Ele nunca foi exatamente amigo de conversar com frequência, trocar mensagens ou sair para jantar fora, mas fomos intensamente amigos nas poucas vezes em que nos vimos. Desde o primeiro encontro, foi reencontro, pelo menos para mim.

O Raduan é escritor relutante. Gosta — ou gostava — de ser fazendeiro, trabalhar na terra. Minha mãe era amiga de uma irmã dele, mas só vim a conhecê-lo quando eu já era jornalista. Ele foi o meu primeiro entrevistado. Eu tinha 22 anos, havia começado a trabalhar na Folha, como responsável pela seção de resenhas de livros, e o Raduan, escritor que falava pouco com a imprensa, concordou em dar uma entrevista ao jornal. Fui entrevistá-lo juntamente com outro jornalista, chamado Augusto Massi, hoje professor de Letras na USP.

Ele morava sozinho numa casa no Pacaembu, aqui em São Paulo, e eu percebi que a conversa seria boa quando o Raduan colocou uma garrafa de uísque — J&B — sobre a mesa. Ele desmistificou completamente a literatura, ao afirmar que um escritor era como um macaco que encaixava varas para pegar uma fruta que estava fora do seu alcance. Já estávamos no quarto ou quinto copo (também de cólera e outros sentimentos), quando declarei eloquentemente que precisava ir ao banheiro. “Eu te mostro onde é o lavabo”, disse o Raduan. Na frente do lavabo, havia um pequeno tapete de lã branca, com uma lhama ao centro. Comecei a rir. “Do que você está rindo?”, perguntou. “Dessa lhama que é a cara da minha sogra.” Ele, que obviamente nunca tinha visto a minha sogra, olhou mais de perto a lhama desenhada no tapete e foi peremptório: “Tem razão, é a cara dela”. Desabamos de rir, literalmente. O meu companheiro jornalista teve algum trabalho para nos tirar do chão, pregados que estávamos a ele pela gravidade etílica. Cheguei carregado em casa, achando que tinha escolhido a profissão certa. 

Quando me casei com a filha da sogra que parecia uma lhama, o Raduan nos presenteou com uma panelinha de cobre — que não levei comigo ao me divorciar. Não me lembro qual era o teor do cartão, igualmente perdido. Tenho o estranho hábito de deixar para trás coisas que interessam e manter as que não interessam.

Fiz uma segunda entrevista com o Raduan quando estava na Veja. Dessa vez, ele disse que bom mesmo era dormir. Entrevista publicada, o diretor da revista na época, Mario Sergio Conti (está na minha lista da festa dos 60 anos), quis conhecê-lo. Fomos almoçar no Fasano, que ainda não era no hotel porque hotel não havia. O Raduan no Fasano era uma cena bastante improvável. A improbabilidade foi explicitada quando o maître comunicou que o carro dele (velho, barato e vermelho, não necessariamente nessa ordem) havia sido lavado por cortesia. O subtexto é que a lata-velha estava suja demais para ficar estacionado na frente do restaurante, ao lado dos carrões reluzentes da clientela rica. 

A última vez em que vi o Raduan foi às vésperas de lançar o meu primeiro romance, lá se vão quase 18 anos. Eu pedi a ele que o lesse antes de passar à editora e desse a sua opinião. O Raduan me chamou para conversar e disse que eu era um ótimo narrador e que havia gostado muito do livro. Ele me deu uma dica para deixar um trecho mais ambíguo, dizendo que bons escritores deveriam deixar os leitores dubitativos em relação ao que se narrava. Saí feliz e com a lição aprendida.

Nunca brigamos, mas, ao elaborar mentalmente a lista para a grande festa que não ocorrerá, pensei que talvez eu tenha me tornado um desafeto dele. Será? O Raduan admira Lula, demonstrou publicamente o seu apoio ao petista, de quem acho até que virou amigo, e acredita que a Lava Jato é um braço do mal. Estamos, portanto, de lados opostos, com o agravante de eu ser sócio-fundador de O Antagonista e desta Crusoé. O que aconteceria se eu ligasse para o Raduan? Ele me atenderia? Se me atendesse, me chamaria de “fascista” com aquela respiração ofegante que fica quando está com raiva? Não sei. Só sei que, se pudesse, eu comemoraria os meus 60 anos ao lado dele, não como desafeto, mas como amigo. E nos embriagaríamos de uísque, e desabaríamos de rir em frente ao lavabo, por causa da lhama que se parece com a minha sogra, com Lula, com Bolsonaro, com Moro, com todo mundo que não estivesse naquele momento no chão.

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