Adriano Machado/Crusoé

Escândalo na tragédia

Não bastasse a catástrofe sanitária, a CPI da Covid agora tem de investigar a denúncia de um deputado bolsonarista que acusa o governo de corrupção na compra de vacinas indianas. Ele diz que avisou Bolsonaro
25.06.21

Ao subir ao palco da CPI da Covid nesta sexta-feira, 25, o deputado federal Luis Miranda, do DEM, pode marcar uma inflexão no rumo das investigações que enredam Jair Bolsonaro. Para além das já gravíssimas suspeitas que pesam sobre a compra da vacina Covaxin pelo Ministério da Saúde, se o parlamentar fornecer mais detalhes sobre as irregularidades no contrato de 1,6 bilhão de reais assinado com o laboratório indiano produtor da vacina e, principalmente, reconstituir os alertas feitos a Jair Bolsonaro, será a primeira vez que o mandatário do país estará no meio de um caso escabroso de corrupção – e, o que é pior, operado em meio a uma tragédia que já ceifou a vida de mais de 500 mil brasileiros.

Como O Antagonista trouxe em primeira mão na quarta-feira, 23, o deputado bolsonarista Miranda diz ter comunicado pessoalmente ao presidente, em encontros nos dias 29 e 30 de janeiro deste ano, que a negociação estava eivada de ilicitudes e que, portanto, ele “precisaria agir”. Em entrevista exclusiva ao repórter Diego Amorim, o deputado disse que levou o caso para Bolsonaro porque “confiava” nele e entendia que combater os malfeitos era sua “bandeira”.

Apesar das advertências, o presidente avalizou a assinatura do contrato e, em 25 de fevereiro, o documento foi finalmente assinado com a nebulosa Precisa Medicamentos, contratada de maneira atípica pelo Ministério da Saúde para o fornecimento de 20 milhões de doses da vacina Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech. Em qualquer governo sério do mundo, caberia ao presidente da República tomar providências para ao menos saber se a aquisição dos imunizantes poderia ser lesiva aos cofres públicos. Ou, se como advertiu o deputado, havia indícios de práticas pouco republicanas na negociação. Mas Bolsonaro teria feito ouvidos moucos para os alertas, que prosseguiram.

Em 20 de março, um sábado, Luis Miranda voltou ao presidente. Desta vez, munido de documentos destinados a comprovar o que ele havia dito anteriormente e acompanhado do irmão, o servidor do Ministério da Saúde, Luis Ricardo Fernandes Miranda. O encontro ocorreu no Palácio da Alvorada. Detalhe: o deputado diz que, por ter ligado o alarme na pasta da Saúde, seu irmão estava sendo perseguido. Para esclarecer esse e outros episódios que envolveram a compra das vacinas indianas, os dois prestarão depoimento à CPI nesta sexta-feira, 25.

O deputado Luis Miranda diz que alertou Bolsonaro ao menos três vezes sobre irregularidades na compra das vacinas indianas
Antes de ser recebido pelo presidente no Alvorada, o deputado, que até esta semana integrava a base mais fiel de Bolsonaro no Congresso, registrou por escrito qual seria o tema da conversa, justamente para conferir ao encontro a relevância necessária. A um assessor presidencial, mandou a seguinte mensagem: “Avise ao PR (presidente da República) que está rolando um esquema de corrupção pesado na aquisição das vacinas dentro do Ministério da Saúde. Tenho provas e as testemunhas. Sacanagem da p… a pressão toda sobre o presidente e esses ‘FDPs’ roubando”. Em resposta, o assessor do Planalto enviou a imagem de uma bandeira do Brasil. Uma hora depois, Luis Miranda reforçou: “Não esquece de avisar o presidente. Depois, não quero ninguém dizendo que eu implodi a República. Já tem PF e o c. no caso. Ele precisa saber e se antecipar”.

O Planalto, mais uma vez, não se moveu e o presidente entabulou uma promessa. Afirmou a Miranda, nas palavras do deputado, que “ele comunicaria a Polícia Federal imediatamente”. Mas não há nenhum registro na PF de investigação ou inquérito aberto sobre a compra da vacina indiana Covaxin. Ou seja, o presidente, novamente, preferiu lavar as mãos – o que, na letra fria da lei, pode significar um grande problema para ele, já que deixar de agir mediante indícios de crime contra a administração pública configura crime.

Os sinais da leniência do governo com a corrupção se tornaram evidentes desde quando, em meados de 2019, ainda no primeiro ano de governo, Bolsonaro começou a rasgar a carta branca dada ao ex-juiz Sergio Moro, então ministro da Justiça, designou um procurador-geral da República fora da lista da lista tríplice para atuar de acordo com seus interesses à frente do Ministério Público Federal, aliou-se a figuras controversas do Judiciário nacional e não só interveio como aparelhou a PF para proteger a primeira-família, em especial seu filho 01, Flavio Bolsonaro, apanhado em um esquema de rachid na na Assembleia do Rio. Por tudo isso, nada do que vem à tona agora chega a surpreender. O que muda, sobretudo do ponto de vista político, é o possível envolvimento pessoal do presidente da República com um caso claro e manifesto de corrupção.

Na terça-feira, 22, Miranda disse em conversa no gabinete do relator da CPI, Renan Calheiros, na presença do senador Marcos Rogério, integrante da tropa de choque do governo, que teria condições, pelo que sabe e testemunhou, de “derrubar a República”. “Não tem acordo. A verdade é a minha missão”, reiterou dois dias depois nas redes sociais. Se confirmados os relatos de seu aliado, o presidente da República pode ter prevaricado – de acordo com o Código Penal, prevaricação é o ato de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. 

Mateus Bonomi/Agif/FolhapressMateus Bonomi/Agif/FolhapressRicardo Barros apresentou a emenda que abriu caminho para o negócio
A julgar pelos movimentos que fez ao longo da semana, o deputado parece disposto a contar tudo o que sabe. A interlocutores, Miranda revelou ter novas informações que seriam explosivas. Uma delas envolve a Madison Biotech, sediada em Cingapura e criada em fevereiro de 2020, no mesmo endereço de outras 600 empresas. Suspeita-se que seja uma empresa de fachada. A offshore seria utilizada pela Precisa Medicamentos para receber um adiantamento de uma bolada milionária do contrato com a Covaxin.  Em 19 de março, a Madison emitiu uma nota fiscal para o Ministério da Saúde no valor de 45 milhões de dólares, que deveriam ser pagos de forma antecipada, por um lote de 3 milhões de vacinas. A cobrança não estava nem sequer prevista no contrato firmado pelo governo com a Precisa. O pagamento só não foi feito porque a burocracia da pasta estranhou e impôs obstáculos ao pagamento.

A empresa, com capital social de mil dólares de Cingapura e cujas ações pertencem à Biovet, uma firma indiana responsável por produzir vacinas para gado, ainda emitiu uma segunda fatura para pagamento antecipado no mesmo dia. Foi esse documento que o irmão de Luis Miranda, funcionário da Saúde, se recusou a assinar para autorizar a ordem de pagamento – por isso, segundo o parlamentar, ele foi perseguido internamente. O acordo com a Precisa excluía a possibilidade de pagamento antecipado e previa a entrega do primeiro lote com 4 milhões de vacinas no prazo de 20 dias após a assinatura. O papelório já está em poder da CPI. “Esse documento sem dúvida seria uma prova fundamental, porque o contrato com a Precisa prevê pagamento após a entrega e aí se cria uma pressa para pagamento antecipado, totalmente fora do contrato. É uma coisa gravíssima”, afirmou o senador Alessandro Vieira, integrante da comissão.

O conjunto de esforços do governo para viabilizar a operação sugere que a trama, como sublinhou Vieira, é revestida de imensa gravidade. Quando foi alertado no fim de janeiro pela primeira vez por Miranda, por exemplo, Bolsonaro já havia feito dois movimentos estratégicos em favor da compra das vacinas da Covaxin: em 6 de janeiro, o presidente editou uma medida provisória que inviabilizou naquele momento a compra da vacina da Pfizer, contrariando uma orientação da própria Casa Civil. Dois dias depois, ele enviou uma carta ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, dizendo que a Covaxin estaria preferencialmente entre as vacinas escolhidas pelo governo brasileiro para a imunizar a população. Quatro dias depois das denúncias de Miranda ao presidente, o deputado Ricardo Barros, ex-ministro da Saúde de Michel Temer líder do governo Bolsonaro na Câmara, apresentou uma emenda para flexibilizar a medida provisória sobre a compra de vacinas, facilitando as negociações para aquisição da Covaxin. A emenda seria aprovada em 5 de março pelo Congresso.

Nesse meio tempo, não só o contrato seria assinado, como passariam a ocorrer pressões de toda sorte, incluindo trocas de e-mails e telegramas enviados pelo embaixador do Brasil em Nova Déli ao Itamaraty, para que a aquisição fosse efetivada, já contando com o futuro aval da Anvisa para a importação das vacinas – a autorização viria em 6 de junho. Luis Ricardo, o irmão do deputado, disse que as cobranças eram atípicas: “Acontecia muita reunião, muita ligação, inclusive na sexta-feira à noite e final de semana para perguntar: ‘E aí, a empresa mandou documentação?’, ‘Como é que tá?’, ‘Cobra a empresa’”. Ele também afirmou que era pressionado constantemente pelo coronel Alex Lial, coordenador da área e homem de confiança do então ministro Eduardo Pazuello.

Eduardo Matysiak/Futura Press/FolhapressEduardo Matysiak/Futura Press/FolhapressReação de Onyx Lorenzoni deu a medida do desespero do governo
A Precisa, juntamente com outras empresas do grupo, é conhecida por contratos estranhos na área de saúde. No curso de um inquérito civil, o Ministério Público Federal identificou indícios de crime em um negócio fechado pelo grupo com o Ministério da Saúde na época em que Ricardo Barros, o atual líder do governo Bolsonaro na Câmara, era ministro. Entre as irregularidades sob investigação, estão cláusulas benevolentes e quebra contratual, com desrespeito aos prazos acertados. Ricardo Barros é um dos alvos da apuração. A firma também é investigada por vender testes de Covid a preços supostamente superfaturados para o governo do Distrito Federal. A aquisição da Covaxin também já havia virado objeto de investigação antes mesmo dos relatos do deputado bolsonarista. Entre os motivos da apuração, está o valor negociado com o ministério: 15 dólares, ou 80,7 reais, por dose. Para efeito de comparação, a dose da vacina da Pfizer custou aos cofres públicos 56,3 reais.

Além dos fios desencapados do contrato e de a Covaxin ter sido negociada em tempo recorde, chama a atenção a maneira como a compra foi feita – a vacina indiana foi a terceira a ser contratada pelo governo federal, logo depois da fórmula da AstraZeneca e da Coronavac. Nas outras aquisições, o Ministério da Saúde fechou diretamente com os fabricantes.

A Precisa Medicamentos entrou oficialmente no negócio da vacina no começo de janeiro, com a assinatura de um acordo com a fornecedora Bharat Biotech, para ser a representante da Covaxin no Brasil. O acerto foi anunciado no dia 12 de janeiro. No entanto, documentos em poder da CPI revelam que a empresa já se apresentava como mediadora do negócio ao menos desde 20 novembro do ano passado, data da primeira reunião do Ministério da Saúde para tratar do assunto.

Desde 2014, a empresa, que tem capital social de 12,9 milhões de reais declarado à Receita, é comandada por Francisco Maximiano. Ele a controla por meio de outra firma com histórico de falcatruas junto ao governo, a Global Gestão em Saúde. Foi justamente a Global que arrastou o líder do governo na Câmara e autor da emenda que abriu caminho para a compra das vacinas da Covaxin para o banco dos réus em uma ação por improbidade administrativa ajuizada pelo MP. A empresa foi contratada pelo Ministério da Saúde para fornecer medicamentos de alto custo para o SUS ao preço de 20 milhões de reais. O governo pagou o valor contratado, mas não recebeu os remédios.

Kevin David/A7 Press/FolhapressKevin David/A7 Press/FolhapressO Ministério Público viu indícios de crime na negociação da Covaxin, ao custo de 80,7 reais por dose
Maximiano não é o único personagem enrolado em confusões pretéritas. O próprio deputado Luis Miranda, que agora ameaça implodir o governo, já foi acusado de aplicar golpes no Brasil e nos Estados Unidos, onde vivia antes de ser eleito em 2018 na onda do bolsonarismo e do discurso de renovação da política. Miranda vendia cursos nas redes sociais em que ensinava a “ganhar dinheiro fácil”. O parlamentar era, até recentemente, recebido com tapete vermelho nos principais gabinetes do governo e passeava de moto com o presidente, além de frequentar o Palácio da Alvorada. Miranda diz que, depois de ter levado a Bolsonaro as evidências de irregularidades na aquisição das vacinas, o tratamento mudou. Até promessas de repasses de recursos para projetos apadrinhados por ele deixaram de ser cumpridas.

As reações do governo ao longo da semana evidenciam que a cúpula do poder em Brasília está atordoada com o que o deputado disse e ainda poderá dizer. Primeiro, Bolsonaro resolveu se livrar do queimado ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que pediu demissão exatamente no mesmo dia em que o deputado expôs publicamente a trama. Na sequência, coube ao ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Onyx Lorenzoni, em tom intimidatório, dizer que os documentos apresentados pelo deputado e seu irmão eram falsos e informar que Bolsonaro, agora sim, pediria à Polícia Federal e à Procuradoria-Geral da República, para investigar a dupla por “denunciação caluniosa”“O governo Bolsonaro vai continuar, sim, sem corrupção”, disse o ministro.

Em seu acesso de fúria, Lorenzoni deixou escapar a palavra mágica que preocupa o governo e, sobretudo, o presidente: corrupção. Bolsonaro está em pânico porque sabe que o escândalo da Covaxin e suas possíveis digitais em um caso de roubo e desvio de dinheiro público podem mudar o humor do Congresso Nacional e até embalar um até há pouco improvável processo de impeachment. As próximas semanas serão de tensão elevada em Brasília – na CPI da Covid e fora dela.

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