AlexandreSoares Silva

Em defesa da tolice

25.06.21

Durante tempo demais na história da humanidade nos esforçamos para preservar tudo de sábio que era dito, construindo bibliotecas inteiras de sabedoria, e deixamos cair no esquecimento tudo que era tolo. O resultado disso é que toda tolice dita agora parece que nunca foi dita antes – é original, com o brilho e atração de um pensamento original, e os argumentos que derrubavam essa tolice foram esquecidos também, e têm que ser reinventados do nada.

Só a nossa época foi sábia o suficiente para construir uma enorme biblioteca de preservação da tolice – uma gigantesca Biblioteca de Alexandria da Imbecilidade. Passear por ela é a primeira coisa que fazemos ao acordar. É o que fazemos também na hora do almoço, e nos intervalos de trabalho, e quando devíamos estar trabalhando, e logo antes de ir dormir. Passamos o dia inteiro passeando entre as estantes desse edifício que imagino imenso e de mármore, com estátuas assombrosas e inspiradoras dos maiores tolos do mundo; e lá ficamos folheando os volumes ao acaso, lendo trechos em voz alta, mostrando aos amigos, sublinhando, copiando trechos em pergaminhos, mandando esses pergaminhos para parentes distantes através de pombos- correio, etc.

O que os sábios da antiguidade teriam achado dessa nossa biblioteca da tolice, que frequentamos e ampliamos todos os dias? Aristóteles, Platão, Sócrates, ou até mesmo as pessoas que eram feitas de trouxas por Sócrates, defendendo com veemência nos diálogos com ele ideias evidentemente tolas, mas inteligentíssimas se comparadas com as do brasileiro médio – o que diriam eles se pudessem passear por essa biblioteca?

Imagino que eles, um pouco como nós às vezes, ficariam estupefatos, enojados, desgostosos, se perguntando por que tantos escribas se deram ao trabalho de registrar para sempre semelhantes tolices. Mas imagino também que passadas algumas semanas os discípulos de Sócrates, digamos, estranhariam o seu sumiço, e não o encontrariam em parte nenhuma – até alguém lhes dizer que tem visto Sócrates entrando furtivamente, todos os dias, por uma porta lateral da Biblioteca da Tolice.

DISCÍPULO: Ah, eis que o encontro! Por que passais, ó Sócrates, dias inteiros lendo tolices, quando todos os que o admiram sentem fome e sede da sua sabedoria?

SÓCRATES: Para aprender, ó Antístenes; pois Fernando Haddad, Jones Manoel e Manuela Dávila são fontes inesgotáveis de instrução.

DISCÍPULO: Que dizeis, Sócrates? Terá a loucura corrompido o vosso cérebro?

SÓCRATES: De forma alguma, Antístenes! E isso é facilmente verificável. Pois, diga-me: o médico que deseja ampliar seus conhecimentos das doenças do fígado, deve ele procurar um homem saudável desse órgão, e que jamais se queixou dele? Ou deve, pelo contrário, procurar um doente do fígado, amarelo, fraco, dado a crises de vômito e má digestão?

DISCÍPULO: Deve procurar um doente.

SÓCRATES: Muito bem. E o homem desejoso de estudar a variedade dos animais, ao estudar a formação óssea das codornas, por exemplo, deve colecionar centenas de esqueletos saudáveis de codorna, em tudo iguais uns aos outros, ou, pelo contrário, deve cuidar de colecionar todas as variações anormais dos ossos de codorna, apresentando todo tipo de deformação?

DISCÍPULO: Os deformados, Sócrates.

SÓCRATES: Da mesma maneira, desejoso de procurar a sabedoria, deve o homem prudente cultivar apenas a conversação dos sábios, ou deve, pelo contrário, frequentar…

DISCÍPULO: Os tolos. Tá, Sócrates. Entendi.

SÓCRATES: Não, mas ele deve frequentar –
DÍSCIPULO: Ele deve frequentar os tolos, Sócrates. Eu já tinha entendido lá atrás.

Não consigo deixar de imaginar os sábios da antiguidade visitando essa biblioteca todos os dias, e se regalando com as obras completas dos grandes tolos da história.

EPICURO: De que ri, Pitágoras?

PITÁGORAS: Uma trivialidade – quase me envergonho de dizê-lo. A temível pitonisa da Mooca, Rosana Hermann, está contando uma história fascinante sobre uma atriz chamada Susana Vieira. Aparentemente, estando esta atriz na casa de alguém chamado “Boni”…

PLATÃO (interrompendo): Que achais desta análise política do poderoso arconte Túlio Gadêlha: “17 anos sem o líder do trabalhismo. Brizola ensinou que radical mesmo é a miséria, a fome, a pobreza.”

TALES DE MILETO: Terrificante aforismo!

DEMÓSTENES: Estudantes de retórica, atenção: percebam como cada palavra de Túlio Gadêlha habilmente enfraquece o efeito da palavra anterior.

ZENÃO DE ELEIA: Faz-nos pensar.

EMPÉDOCLES: Desculpem interromper, mas ouçam esta análise da obra do filósofo hebreu Noam Chomsky, feita por Felipe Neto (certamente um dos famosos Sete Sábios do Largo da Batata): “Chomsky DESTROÇOU o crush que eu tinha no Obama. O neliberalismo é um câncer no mundo…”
Etc, etc, etc.

Exatamente como nós, os sábios da antiguidade não sairiam dessa biblioteca nunca mais. E por que sairiam, também, se nela podem ter acesso às obras- primas da Era de Ouro da Tolice?

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