XinhuaReunião do Partido Comunista da China: reação ofensiva americana

A China na berlinda

Joe Biden convoca o G7, a Otan e o resto do mundo para tentar conter o poder de Pequim, que reage propagando a falsa ideia de que não é uma ditadura, mas apenas uma democracia diferente
18.06.21

A China tem disseminado na sociedade brasileira um discurso matreiro. Em mensagens na internet, seminários e artigos na imprensa, diplomatas de Pequim afirmam que, apesar de ser regido por um único partido e de não oferecer liberdades básicas para os seus cidadãos, o país seria na realidade uma democracia.

No início de junho, diplomatas e membros do Partido Comunista Chinês participaram de duas conversas on-line promovidas por um instituto ligado à esquerda brasileira. Em uma delas, após agradecer a presença de Baleia Rossi, presidente do MDB, de Luciana Santos, presidente do PCdoB, e de Carlos Lupi, presidente do PDT, o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, afirmou que o Partido Comunista está “elevando o nível de administração pública nos parâmetros de ciência, democracia e legalidade e fortalecendo a habilidade e o sistema do partido para governar e liderar”.

Na outra conversa, Li Junru, apresentado como “teorista do marxismo na China e ex-vice-diretor do Centro de Pesquisa Histórica do PCCh”, explicou o que seria o sistema democrático com características chinesas: “É uma democracia com centralização, mas com uma centralização nos moldes democráticos. Esse sistema democrático é inovador. Não é o mesmo da democracia americana”.

Exemplos da investida chinesa também podem ser encontrados de forma esparsa na imprensa nacional. Um site desavisado repercutiu um encontro do mesmo instituto, realizado em março, com o título: “Embaixador da China no Brasil diz que Partido Comunista tenta aprimorar democracia no país asiático”. A notícia, desacompanhada de qualquer questionamento, é um indício de que o esforço chinês de se apresentar como uma democracia está surtindo efeito. Em maio, uma revista semanal publicou um artigo em que o embaixador Wanming afirmava que o PCCh fundou a República Popular da China, em 1949, “encerrando milênios de autocracia feudal para dar lugar à democracia popular”.

A China continua a ser, sim, uma ditadura. Nada aconteceu recentemente que possa mudar o país de categoria. Além disso, chamar as coisas pelo seu devido nome é um imperativo moral. No território chinês não há liberdade de expressão e opositores e minorias étnicas e religiosas são tratados com crueldade. No último dia 11, por exemplo, a Anistia Internacional divulgou um relatório condenando a detenção arbitrária e a tortura de centenas de milhares de muçulmanos na província de Xinjiang, com o objetivo de obrigá-los a abandonar sua fé. Nesta semana, especialistas da ONU pediram explicações sobre o que chamam de “colheitas de órgãos” – cristãos, muçulmanos uigures, tibetanos e membros da seita Falun Gong são presos sem motivo e teriam seus corações, rins, fígados e córneas retirados para serem transplantados em outras pessoas.

Isac Nóbrega/PRIsac Nóbrega/PRXi Jinping, em visita ao Brasil: diplomacia e atrocidades
Em uma democracia, por mais capenga que seja, atrocidades como essas jamais seriam uma política de estado e dificilmente seriam permitidas. Mas a propaganda chinesa prescinde totalmente da verdade para atingir o seu principal objetivo, que não é exportar o modelo do PCCh, mas se contrapor à postura adotada pelos Estados Unidos nos últimos anos para conter a influência chinesa.

Desde a campanha presidencial em 2016, o ex-presidente americano Donald Trump acirrou o discurso contra a China. Como resposta, no final de 2019, o ditador chinês Xi Jinping fez um discurso dizendo que seu país era uma “democracia em processo integral”. A briga foi dura mas, naquele tempo, ela estava restrita às duas potências e a imprevisibilidade de Trump trazia esperanças de que a tensão seria passageira.

A chegada do democrata Joe Biden à Casa Branca, em janeiro deste ano, elevou a temperatura. Em vez de entrar em um duelo contra Pequim ao estilo de Trump, Biden assumiu a missão de reunir as democracias do mundo para fazer frente às ditaduras – e, de todas elas, a China é o alvo principal. A partir da última sexta-feira, 11, o americano fez um périplo por várias cidades europeias para reunir aliados com esse objetivo. Na cúpula do G7, no Reino Unido, Biden conseguiu convencer a organização a divulgar um comunicado conjunto citando a China quatro vezes. Um trecho pede uma investigação sobre as origens do coronavírus, em Wuhan. Outro exige o respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais na província de Xinjiang.

Além da retórica, um pacote de bilhões de dólares foi anunciado para fazer frente à iniciativa chinesa na chamada Nova Rota da Seda, o ambicioso programa de Pequim destinado a angariar simpatia e apoios estratégicos em todos os continentes do planeta. Os membros do G7 estão dispostos a conceder empréstimos em infraestrutura para nações pobres e em desenvolvimento para torná-las menos dependente da China. “Os chineses estão preocupados com o fato de que, de certa forma, o governo americano atual pode representar um problema maior do que o de Trump, porque Biden deseja construir uma coalizão mais forte para confrontar a China em questões de direitos humanos, comércio e investimentos. A reunião do G7 mostrou a complexidade disso”, diz Anthony Saich, professor de relações internacionais e diretor do Centro Ash para Governança Democrática na Harvard Kennedy School.

Na segunda-feira, 14, em uma reunião da Otan, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, criada para conter a antiga União Soviética, Biden obteve dos demais países-membros um texto dizendo que “as ambições declaradas e o comportamento assertivo da China apresentam desafios sistêmicos à ordem internacional”. Dois dias depois, o presidente americano tentou uma aproximação com o russo Vladimir Putin, o que foi visto como uma maneira de afastá-lo da China.

ReproduçãoReproduçãoJoe Biden com Angela Merkel: multilateralismo do democrata mira Pequim
O objetivo do Partido Comunista Chinês não é imitar a União Soviética, que criou partidos comunistas ao redor do mundo e conduzia sua política externa com um tom messiânico. O que os chineses querem é combater essa ideia de supremacia de valores ocidentais, segundo a qual os países podem ser divididos entre democracias e ditaduras. Ao fazer isso, a China quer reduzir os ataques de fora”, diz David Shullman, que já foi assessor para a Ásia no governo americano e hoje é pesquisador do Instituto Internacional Republicano.

O principal escudo que a China conta para se proteger dos golpes de Biden, contudo, não são os ardis retóricos de seus diplomatas em seminários como aqueles que contaram com a participação de políticos brasileiros, mas o seu poderio econômico. Os interesses em jogo são complexos. No final do ano passado, a chanceler da Alemanha, Angela Merkel, anunciou um acordo de investimentos entre a União Europeia e a China, após sete anos de negociações. Em maio deste ano, o Parlamento Europeu suspendeu a ratificação do acordo. As negociações foram interrompidas, mas os empresários europeus não desistiram de ganhar maior acesso ao mercado chinês.

Biden fala muito em multilateralismo, mas os europeus não estão tão assim do lado dele, porque o principal parceiro comercial deles é a China. Mais apropriado seria falar em unilateralismo americano”, diz o argentino Javier Vadell, professor de relações internacionais da PUC de Minas e especialista em China. “Essa postura de Biden tem a ver com o histórico do Partido Democrata, que costuma erguer esse pedestal moral ao olhar o globo. Mas estamos entrando em uma era em que diversas civilizações irão conviver, com diferentes modelos”, emenda o professor.

No plano interno, o Partido Comunista Chinês está com a situação sob inteiro controle. Após escorregar no começo da pandemia do coronavírus, escondendo informações, o governo minimizou o contágio e a economia neste ano deve crescer 6%. No próximo 1º de julho, o Partido Comunista Chinês celebrará seus 100 anos. É de se esperar que nesse dia o resto do mundo escute mais sobre a tal “democracia chinesa”.

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