Alex Silva/Estadão Conteúdo"O corrupto é um sociopata, além de um jogador, que só age após medir riscos"

‘Penso em pendurar a lupa’

Desolado com o atual cenário político do país, o fim da Lava Jato e a possível polarização entre Lula e Bolsonaro, o economista fundador do Contas Abertas prepara sua aposentadoria
11.06.21

Aos 68 anos, o economista Gil Castello Branco é um dos mais conhecidos fiscais das contas públicas do país. Fundador da premiada organização Contas Abertas, que desde 2005 realiza um trabalho de controle social dos orçamentos públicos, ele ajudou a revelar grandes escândalos da cena política brasileira das últimas décadas, como as pedaladas do governo Dilma Rousseff, e expôs privilégios imorais do setor público. Nos últimos cinco anos, entretanto, a escalada rápida da impunidade no país fez arrefecer o ânimo de Castello Branco e ele agora prepara-se para aposentar as chuteiras. Ou melhor, para “pendurar a lupa”, como prefere dizer. Defensor ferrenho do bom uso dos recursos públicos, o economista cansou de enxugar gelo e sente-se hoje numa “missão quixotesca”.

“Havia uma grande expectativa de mudança a partir dos resultados da Lava Jato, mas, de uma hora para a outra, entramos em uma curva no sentido contrário, tudo começou a ser revertido, o que gerou uma frustração grande”, explica o economista. “O cenário é muito desolador. De alguns anos para cá, passamos a vivenciar a construção de um pacto pela impunidade”, afirma o fundador da organização Contas Abertas, que desagrada a políticos desde a década de 1980.

O economista também não esconde o desânimo com relação ao cenário eleitoral de 2022 e lamenta que, mais uma vez, os brasileiros possam ser obrigados a escolher entre o PT do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Bolsonaro. “A tendência é que, mais uma vez, tenhamos essa radicalização. Isso vai dividir ainda mais o país. Dividido, o país não caminha”, afirma. Confira os principais trechos da entrevista.

 O sr. tem um trabalho de mais de três décadas de fiscalização de gastos públicos. O que mudou nesse período?
Há muitos anos eu me dedico a fomentar a transparência, aumentar o acesso à informação e combater a corrupção. Essas são as missões da minha vida. Talvez eu tenha sido um dinossauro nessa área, um dos pioneiros na disseminação de informações sobre o controle, notadamente na área econômica, do Orçamento da União. Muitos reconhecem essa minha atividade como pioneira. O Contas Abertas foi a primeira entidade a ter uma senha do Siafi (sistema tecnológico que reúne informações orçamentárias). De alguns anos para cá, passamos a vivenciar a construção de um pacto pela impunidade. Esse pacto já vinha sendo costurado desde 2016.

Houve um momento de inflexão?
O fato marcante foi quando o então ministro Romero Jucá teve diálogos gravados com o ex-presidente da Transpetro Sergio Machado, dizendo que era preciso uma mudança no governo federal para resultar em um pacto para “estancar a sangria”. Essa expressão ficou muito marcada. Os dois eram investigados pela Lava Jato. A operação, ainda que possa ter imperfeições, o que é normal em uma ação desse tamanho, em cinco anos gerou 285 condenações, 600 réus e mais de 3 mil anos de penas. Foi uma operação que realmente parecia o início de uma nova fase no combate à corrupção no Brasil. A meu ver, o principal fator que realimenta a corrupção é a impunidade. O corrupto é um sociopata, além de um jogador, que só age após medir riscos. Ele avalia o perigo de cometer um ato ilícito. E com tudo o que a Lava Jato vinha gerando, a tendência seria que um corrupto pensasse duas vezes antes de cometer um ato ilícito, porque ele começou a imaginar a possibilidade de ser preso, o que não acontecia antes no Brasil.

E o que gerou esse pacto pela impunidade?
Esse pacto teve a participação dos três poderes. O Judiciário decidiu, por exemplo, que crimes comuns correlatos ao caixa dois passariam à Justiça Eleitoral, que sabidamente não tem estrutura para julgar. Depois, paralisou temporariamente as trocas de informações entre o Coaf e delegados e procuradores. A Justiça suspendeu investigações da Receita Federal que eram republicanas, mas atingiram ministros do Supremo e seus familiares, anulou a condenação do Aldemir Bendine, reinterpretando a lei para gerar benefícios, anulou o processo julgado pelo Sergio Moro no caso do Banestado, o que já era um indício do que vinha pela frente. O Judiciário mudou a interpretação da prisão após condenação em segunda instância, que a meu ver foi o pilar principal a ser derrubado. Tudo isso diminuiu a percepção de risco por parte dos corruptos. O cúmulo desse processo a gente vivenciou na semana passada, quando o ministro Dias Toffoli votou contra uma delação premiada que o incriminava, com fatos significativos.

De que forma o Congresso contribuiu para esse quadro?
O Congresso aprovou a Lei de Abuso de Autoridade, nitidamente não para melhorar a legislação, mas para constranger procuradores e juízes. Essa foi a origem da proposta, todos nós sabemos. Os parlamentares desidrataram e desfiguraram totalmente o pacote anticrime do Sergio Moro e engavetaram as 70 medidas de combate à corrupção, que foi um trabalho sério, desenvolvido pela sociedade civil, com a participação de 285 colaboradores. O Legislativo criou o juiz de garantias e não votou a PEC da Segunda Instância, que é um anseio de todos aqueles que pretendiam um país menos corrupto.

Alex Silva/Estadão ConteúdoAlex Silva/Estadão Conteúdo“Os parlamentares desidrataram e desfiguraram totalmente o pacote anticrime do Sergio Moro e engavetaram as 70 medidas de combate à corrupção”
Qual o papel do Executivo nos retrocessos recentes?
O Executivo contribuiu para o quadro atual. Assim que o atual governo entrou, decidiu rasgar a carta branca dada ao Sergio Moro. O presidente designou um procurador-geral da República fora da lista da lista tríplice, escolhido a dedo por ser uma pessoa da confiança do presidente da República. O MP é um quarto poder, que representa a sociedade institucionalmente. Mas estamos vendo que a atuação do MPF hoje é muito mais passiva do que foi anteriormente. Há ainda fortes indícios de intervenção política na PF. Mas o presidente disse que acabou com a Lava Jato porque não havia mais corrupção. Talvez nós estejamos vivendo a maior corrupção da história do Brasil. No enfrentamento da Covid, foram gastos 600 bilhões de reais. Se imaginarmos, como hipótese, que tenham sido desviados cerca de 3% desse valor, que é um percentual até otimista, isso geraria um desvio de 18 bilhões de reais. A Lava Jato recuperou efetivamente cerca de 5 bilhões de reais, podendo chegar a 14 bilhões de reais. O enfrentamento à Covid gerou uma corrupção horizontalizada, já não é mais em um único partido ou empresa estatal, é uma corrupção no recebimento do auxílio emergencial, na compra de máscaras, respiradores, álcool gel. Talvez a gente esteja sofrendo com o maior montante de desvio de recursos de toda a história, maior até do que teria sido descoberto pela investigação da Lava Jato.

O Centrão, que cada vez mais conquista novos espaços no governo, não tem interesse em mudar a estrutura do serviço público ou profissionalizar a gestão. Essa é uma das causas para as reformas não andarem?
O presidente assumiu o governo com o discurso da nova política, mas não conseguiu se relacionar com o Congresso e viu que isso era inviável. No Brasil, se Jesus Cristo assumir a Presidência do país, ou ele vai se relacionar com o Centrão de alguma forma, ou será destituído. Essa é uma questão que tem que ser enfrentada, para conseguirmos um aprimoramento da política. Ainda tenho algumas esperanças. Quando a gente fala em ampliar a participação social, basta ver quantos seguidores têm movimentos sociais como o MBL, o Vem pra Rua, o Nas Ruas. Essa participação social, ainda que de uma forma desordenada, sem uma liderança forte, com objetivos desconectados, está cada vez cada vez mais ampliada. Outro exemplo foi o fato de que nas últimas eleições vários movimentos suprapartidários elegeram uma quantidade grande de pessoas. Esses movimentos elegeram 30 deputados e quatro senadores. É um trabalho de formiguinha, que leva tempo, mas são tentativas que podem mudar um pouco a realidade.

O cenário político caminha para uma nova eleição polarizada entre o PT e Jair Bolsonaro. Como vislumbra o combate à corrupção nesse horizonte?
As perspectivas para as próximas eleições não são nada animadoras. As últimas pesquisas têm mostrado um contingente de pelo menos 49% de indecisos. Tirando os polos radicais a favor de Lula e Bolsonaro, teria um grupo que, se convergisse para uma única candidatura, elegeria esse candidato. O problema é que é improvável que isso aconteça. As pesquisas mostram que a polarização tem aumentado. Em vez do surgimento de uma terceira via, está havendo o fortalecimento de ambos. A tendência é que, mais uma vez, tenhamos essa radicalização. Isso vai dividir ainda mais o país. Dividido, o Brasil não caminha. Temos diagnósticos suficientes sobre as necessidades do país, mas não temos ambiente político para que as coisas aconteçam. Sob a ótica do enfrentamento da corrupção, nenhum dos dois conseguiu demonstrar que essa seria uma linha de suas ações.

DivulgaçãoDivulgação“O presidente assumiu o governo com o discurso da nova política, mas não conseguiu se relacionar com o Congresso e viu que isso era inviável”
 

É em razão desse cenário que o sr. pensa em pendurar a chuteira?
Na verdade, eu penso em pendurar a lupa. Uma vez, a minha sogra me deu uma lupa de presente, por conta do meu trabalho de fiscalização, e guardo ela com muito carinho. Mas, sim, o cenário é muito desolador. E não mencionei em detalhes os problemas no Ministério Público, onde já víamos um corporativismo institucional e a personalização dos membros. Antes de assumir, Augusto Aras já havia se manifestado contra as forças-tarefas e fez várias referências negativas à Lava Jato. Então, já estava desenhado o que provavelmente aconteceria se ele fosse nomeado. E aconteceu. Quando Bolsonaro assumiu, talvez até por questões familiares, que envolviam os filhos, ele tentou protegê-los de todas as formas. E a corrupção continuou a acontecer. Como eu disse, entre Lula e Bolsonaro, eu vou buscar a minha própria terceira via, que pode ser uma mudança para a praia.

O sr. trabalhou para deixar algum sucessor nesse campo da fiscalização das contas públicas?
Eu até tentei conquistar meu filho para essa causa. Ele sempre gostou muito de esportes, uma vez o levei no Contas Abertas, passei uma manhã com ele mostrando o orçamento do Ministério do Esporte. Navegamos pelo orçamento, falei que dava para ver quem recebe Bolsa Atleta, por exemplo, e depois de uma manhã ele falou: pai, não me interessei pelo que você faz, você está na contramão do mundo. Achei até engraçado, não sabia que o mundo tinha mão e contramão. Mas ele via sempre o desgaste de enfrentar essas situações, de tentar algo que é difícil, uma atitude meio quixotesca.

Como imagina a vida depois de pendurar a chuteira, ou melhor, a lupa?
Vou mudar o telefone, passar para alguns amigos, com a condição de que me liguem para conversar sobre assuntos leves, e não sobre governos. Um amigo sugeriu que eu fizesse um livro, porque eu tenho tantas histórias. Ele sugeriu até o título: histórias de um vovô fiscal. Tenho a ideia de me dedicar mais à minha mulher, Gabriela, aos três filhos, aos netos, isso tudo me faz pensar se agora não tenho que passar a lupa para alguém que continue nessa intenção. Como a gente vive em ciclos, em determinado momento, talvez quando a gente estiver no fundo do poço, pode haver uma inversão disso. Não acredito que a situação seja definitiva, mas acho que vai levar muito tempo para que a gente consiga sair desse buraco. E talvez a minha contribuição já tenha sido dada. 

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