AlexandreSoares Silva

Na rede da autodestruição

11.06.21

Todos nós temos na cabeça o pensamento que vai nos destruir um dia. Ele já está lá, esse pensamento – ou pelo menos um embrião dele, dançando nas nossas mentes, crescendo como um girino num lago.

Um dia ele vai virar um pensamento inteiro, verdadeiro ou falso, inteligente ou estúpido, banal ou brilhante, mas com todo o apelo que os nossos pensamentos têm para nós mesmos. E vamos sentir a vontade ingênua de que alguém mais compartilhe desse pensamento, porque – bom, por que não?

É uma questão de tempo para que a vontade de publicar esse pensamento seja maior do que a nossa prudência. E talvez seja o caso de que a vontade nem seja tão grande, é um impulso fraquinho, fraquinho de tudo, a pessoa digita enquanto está pensando no café que vai tomar, e ela só não se deu conta de que a multidão pode destruir a sua vida toda com base nesse pensamento inofensivo, nessa piadinha, nessa banalidade, postada e assinada.

Mesmo que você se acredite fora do alcance de qualquer risco de destruição, por ser a sua alma inteira politicamente correta, essa é uma segurança falsa. O risco na verdade é o mesmo. Sendo de esquerda, as coisas em que você acredita são conflitantes e irreconciliáveis umas com as outras, formam dois lados quase opostos – e no dia que você pender um pouquinho mais para um desses lados das suas crenças, vai ser massacrado pelos fãs do outro.

Você acredita, por exemplo, que as mulheres são oprimidas, e ao mesmo tempo acredita que são guerreiras fortes e poderosíssimas. Que elas sejam oprimidíssimas e ao mesmo tempo fortíssimas não lhe parece uma contradição. As duas afirmações não podem ser verdadeiras dentro do mesmo universo, mas podem ser verdadeiras dentro da mesma cabeça, e assim elas coexistem na sua. Mas no dia em que você decidir enfatizar um lado só – que são fortíssimas e guerreiríssimas, digamos – vai ser massacrado pelo seu próprios amigos feministas por deixar de frisar que são oprimidíssimas. E se disser só que são oprimidíssimas, vai ser massacrado também por deixar de dizer que são guerreiríssimas e valentíssimas.

Lamento dizer que as suas crenças são formadas por vários pares assim de afirmações irreconciliáveis, e por isso qualquer deslize que você cometa um dia, favorecendo um lado mais do que o outro (mulheres mais que transgêneros, digamos, ou gays mais do que negros) pode ser o passo em falso que vai destruí-lo.

Pensei nisso tudo por causa do Richard Dawkins, o biólogo – imagino que um bom biólogo, embora burro em tudo que diz fora da biologia. Semana passada ele twittou uma asneira sobre Kafka, e as pessoas reagiram com fúria e desdém. Já em 2015 o jornal The Guardian escreveu uma matéria inteira para perguntar se ele não estava prejudicando a própria reputação escrevendo tolices no Twitter. “Ele pode estar estragando seu legado a longo prazo!”, disse alarmado o filósofo Daniel Dennett (sem ponto de exclamação, isso fui eu que botei, mas alarmado mesmo assim). Bem, sim, está. O que mais estamos todos fazendo na internet?

Durante muito tempo esse era o risco de quem escrevia por profissão. Fale sobre todos os assuntos, e por mais moderado e tímido que seja, ocasionalmente alguma opinião sua vai irritar todo mundo. Até eu (digo “até eu” porque tenho uma certa tolerância às opiniões alheias) me irritei na juventude com o Paulo Francis, meu ídolo, veja, quando ele falou mal de Borges ou disse que Tolstói era superior a Dostoiévski, e fiquei meses sem querer ler a sua coluna.

Era, enfim, um risco de intelectuais e jornalistas. Mas agora todos escrevem o tempo todo; até atletas escrevem frases inteiras; nossos tios, primos e sobrinhos publicam aos poucos, na internet, mais textos em um ano do que Nietzsche publicou ao logo de toda a vida; e o que era um risco dos infelizes que escreviam para ganhar a vida é agora um risco de todos.

Li uma vez sobre um santo, esqueci qual, ou talvez um monge, que dormia segurando com uma mão os genitais, com a outra a boca, para se lembrar daquilo que precisava controlar; talvez devêssemos agora dormir com as mãos firmemente presas nas axilas, para nos lembrarmos de não digitar nada além do necessário ao longo do dia.

Se uma fada tocasse na cabeça de um homem qualquer na rua, e de repente todos os seus pensamentos fossem audíveis – quanto tempo levaria a multidão para linchar esse sujeito? Na verdade já estamos vendo a resposta: pois o Twitter, o Facebook, o Substack, o TikTok, o Clubhouse, e o Instagram também, são exatamente essa miserável fada.

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