MarioSabino

Em fuga do Brasil

11.06.21

Às terças-feiras à noite eu fujo do Brasil. Acho que todos nós merecemos fugir do Brasil. Há várias maneiras de fazê-lo em qualquer dia da semana, mas às terças-feiras à noite é como se eu fugisse para outro planeta. Assisto ao programa La Grande Librairie, na TV5 Monde. O formato é frugal: em torno de uma mesa de centro, o condutor do programa conversa com de quatro a cinco escritores que estão lançando livros. Em geral, esses livros têm um tema em comum, abordado pelos autores de diferentes formas, inclusive no gênero. Quem escreveu ficção sobre um determinado assunto pode dialogar com quem escreveu um ensaio, por exemplo. O espectador também recebe dicas de outros livros relacionados, muitos dos quais clássicos que continuam a ser reeditados na França. Filmetes com livreiros que dão indicações livres de leitura completam o cardápio.

O condutor do programa, que já está no ar desde 2008, chama-se François Busnel. É jornalista, tem 52 anos, foi diretor de redação da revista Lire, editorialista da revista L’Express e atravessou os Estados Unidos para entrevistar escritores como Philip Roth, Paul Auster e Joyce Carol Oates. É bonitão, tem aquela cabeleira meticulosamente comprida de parisienses da Rive Gauche e é casado com uma escritora premiada, Delphine de Vigan, autora do romance D’Après une Historie Vraie (Baseado em Fatos Reais), adaptado para o cinema em filme dirigido por Roman Polanski. Dá para ser mais irritante? Dá. François Busnel usa anéis. Grandes anéis. É uma vingança ter motivo para criticá-lo arbitrariamente — sou daquela velha guarda que acha que o único adereço permitido a um homem é um bom relógio.

La Grande Librairie me faz escapar do Brasil para um planeta onde há vida inteligente, nos quais há programas sem apresentadores robotizados ou histriônicos, que não tratam os espectadores como se fossem um bando de Homers Simpson. A TV francesa está cheia de atrações boçais e vulgares também, mas ainda sobra bastante espaço para a discussão intelectual refinada, os debates políticos de ótimo nível e reportagens de fôlego, assim como ocorre em outros países ocidentais com grande tradição cultural. Há de se reconhecer, contudo, que La Grande Librairie é uma emissão que só poderia existir na França (assim como o extinto Bouillon de Culture, ou Caldo de Cultura, de Bernard Pivot), país onde a literatura ocupa um papel central na sociedade. Tanto que, em setembro, após as férias de verão, um dos grandes eventos que ocupam a imprensa francesa é a “rentrée littéraire”, época de lançamento de uma formidável quantidade de novos títulos. 

A compra de livros é uma excelente maneira de separar você do seu dinheiro. Quando ganhei o meu primeiro salário, na Folha de S. Paulo, tive a obrigação básica de comprar três camisas iguais, cuecas novas e um tênis — branco, cheio de furinhos pensados para teoricamente ventilar os pés e que se chamava Power Verão (a minha namorada na época me fez jurar que eu nunca usaria). O prazer básico foi ir às compras na Livraria Italiana, que ficava na avenida São Luiz, no centro de São Paulo. Já não compro tantos livros como antes, mas o programa de François Busnel me separa do meu dinheiro a cada vez que eu assisto a ele. Um dos livros que pretendo comprar, por exemplo, é Sauver la Liberté d’Expression, da filósofa Monique Canto-Sperber. Intelectual que usa o seu imenso arsenal para pensar certo, ela me causa mais inveja do que François Busnel. A conversa de Monique Canto-Serber com ele — o tema era justamente liberdade de expressão — poderia ter-se estendido por mais duas horas, e eu venceria o meu sono até o final.

Na terça-feira desta semana, o tema de La Grande Librairie foi Paris. Dormi em meio à fala da escritora que discorria sobre os 100 metros culturalmente mais intensos da cidade, a rue Férou, que liga o Jardim de Luxemburgo à praça de Saint-Sulpice, mas eu já havia ouvido quem realmente interessava: Mahmud Nasimi. Refugiado da guerra no Afeganistão, ele vivia em extrema penúria e solidão em Paris. Tinha apenas um celular. Dormia na rua ou em abrigos, quando fazia frio, e o seu aspecto maltrapilho afugentava qualquer contato humano que não fosse a subalternidade de quem se vê na situação de ter de pedir esmolas ou fazer bicos, numa língua que não domina.

Em perambulação permanente pela cidade, naquela vida em círculos dos desvalidos, ele acompanhava o muro do Père-Lachaise, quando resolveu entrar no que é o mais famoso cemitério de Paris, sem saber da relevância do local. Ao entrar, rezou pelos mortos, como lhe havia ensinado a sua avó muçulmana: “Um dia é você que estará entre eles e alguém rezará por você”. Ao vagar por entre as sepulturas, deparou com o túmulo de Honoré de Balzac, encimado pelo busto imponente do morto ilustre. Pensou se tratar de um general. Curioso, pesquisou o nome na internet e descobriu ser o escritor paradigmático do romance francês do século XIX. Mahmud Nasimi, que no Afeganistão fugia dos livros como dos talibãs, interessou-se pela biografia e resolveu ler os livros de Honoré de Balzac em PDF. Aprendeu francês assim: como só sabia meia dúzia de palavras e conjugar os verbos “ser” e “ter” nos tempos mais simples, ele aprendia o significado das palavras via sites de tradução e pescava o sentido geral pelo contexto.

De Balzac, ele saltou para Marcel Proust — em cujo túmulo deixou um cartão de agradecimento — e os poetas Paul Éluard e Charles Baudelaire, este enterrado no cemitério de Montparnasse. Transcrevia num caderno trechos de poemas e romances (adora perder-se nas longas frases de Marcel Proust). Ele o mostrou no programa: tem capa dura dourada e sobre suas linhas corre uma linda letra cursiva, que transferiu por um momento a minha inveja de François Busnel para Mahmud Nasimi, eu que tenho uma letra vergonhosamente feia. O caderno faz pensar num tesouro. Instado a recitar um dos poemas que aprendeu de cor, ele escolheu Recolhimento, de As Flores do Mal, de Baudelaire, da qual traduzo a primeira estrofe, tentando manter a rima da melhor forma:  

“Seja sábia, ó minha Dor, e fique tranquila de verdade.

Você pedia a Noite, ela desce, ei-la em nosso seio:

Uma atmosfera obscura envolve a cidade,

A uns trazendo a paz, aos outros, receio.”

Todos ficaram emocionados. Fiquei de olhos ainda mais rasos ao ouvir Mahmud Nasimi resumir o seu amor pela literatura: “Encontrei entre os mortos os amigos que não encontrei entre os vivos”. Ele está lançando o livro Un Afghan à Paris (Um Afegão em Paris), escrito diretamente em francês. Vou me separar do meu dinheiro mais uma vez, você sempre consegue, François Busnel. Vão-se os euros, ficam os seus anéis. Não sei se Mahmud Nasimi escreverá outros livros, mas este único já terá valido. Na minha fuga permanente do Brasil, encontrei um refugiado que encontrou a sua pátria num cemitério de homens, mas não de ideias.

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