Carlos Fernandodos santos lima

A mentira como método

11.06.21

Mentiram-me. Mentiram-me ontem/e hoje mentem novamente. Mentem/de corpo e alma, completamente./E mentem de maneira tão pungente/que acho que mentem sinceramente./Mentem, sobretudo, impune/mente”.

Nunca foram tão atuais os versos iniciais do poema A Implosão da Mentira, de Affonso Romano de Sant’Anna, escrito em repulsa às mentiras contadas pelo regime militar por ocasião do fracassado atentado de oficiais do Exército em um evento comemorativo do Dia do Trabalho, que se realizava no Riocentro, no Rio de Janeiro, no longínquo ano de 1981.

Não bastasse a coincidência de estarmos sendo governados por um mitômano suspeito de também planejar atentados contra instalações do Exército e utilidades públicas, o que se vê na política, nas cortes judiciais, no serviço público e até na imprensa, antiga responsável pela curadoria da veracidade das informações para a população, é a sistematização da mentira como forma de manipular parcelas da sociedade em favor de interesses mesquinhos e desonestos.

O exemplo mais atual desse espetáculo de mentirosos e hipócritas é o da chamada Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid, onde o parlamentar relator, um dos mais abjetos e mentirosos políticos brasileiros, dá lição de moral em ministros e ex-ministros igualmente mentirosos, ameaçando-os de punição por suas falsidades, quando sabe que o Supremo Tribunal Federal sempre garantiu aos investigados e acusados o direito de livre e alegremente mentirem para autoridades.

Direito à mentira já usado e abusado por pessoas como ele próprio, Renan Calheiros, e tantos outros, como Luiz Inácio Lula da Silva, José Dirceu e Fabrício Queiroz (para dar nome a alguns apenas) em investigações e processos. Como procurador da República, presenciei tantos acusados a desafiadoramente mentirem para juízes em seus interrogatórios, que não me surpreende nada o que está acontecendo. Trata-se de consequência de mais uma leniência de nosso STF, que tropicalizou o direito à não autoincriminação – que na sua matriz norte-americana significa apenas o direito a ficar calado –, transformando-o no direito de mentir ou de nem sequer comparecer perante a autoridade policial para seu interrogatório (conforme decisão de Gilmar Mendes, em defesa de investigados na operação Lava Jato).

Agora, em um mundo de fake news e pós-verdade, em uma era em que se relativiza a honestidade, a exatidão e a sinceridade, e que até mesmo o heliocentrismo (como fez o astrólogo Olavo de Carvalho) e a “esfericidade” do planeta são colocados em dúvida, está se tornando impossível alcançar qualquer consenso em torno de fatos, base de qualquer diálogo construtivo. Quando se rejeita inclusive a ciência, que nada mais é que um método de verificação e confirmação de hipóteses, aceitando-se qualquer informação de redes sociais como verdade, torna-se difícil até mesmo o diálogo civilizado e o respeito pelas opiniões alheias.

Mas nem só de um deprimente espetáculo de estelionatários vive a CPI. O depoimento da médica infectologista Luana Araújo foi uma luz em um momento de obscurantismo em que vivemos. É revolucionário ouvir coisas que deveriam ser corriqueiras e claras: “Ciência não tem lado. Ciência é bem ou mal feita. (…) Ciência não é opinião. Posso juntar a opinião de 1 milhão de pessoas, mas elas ainda assim vão ser opiniões. Ciência é método,…” — mas que parecem não fazer sentido para boa parte da população, que acredita na opinião de milhares de desocupados nas redes sociais ou de um astrólogo fajuto que se intitula filósofo, porque nem sequer compreendem o sentido da palavra “método”.

Já os estelionatários da opinião pública, contudo, possuem claramente um método de atuação. Antes de mais nada, são eles discípulos de Joseph Goebbels, ministro de propaganda da Alemanha nazista, afirmando mil vezes uma mentira para que ela se torne verdade. Neste sentido, tanto a esquerda com sua repetição: “esse triplex não é meu”, “não há provas” ou “não houve mensalão, nem petrolão”; quanto a direita na sua ladainha: “é apenas uma gripezinha”, “tratamento precoce funciona” ou “o TCU questiona 50% das mortes”, não passam de agrupamentos de mentirosos contumazes, capazes de tudo para chegar e manter-se o poder.

Assim, políticos como Lula e Bolsonaro “de tanto mentir tão brava/mente/constroem um país/de mentira/—diária/mente”. É inaceitável que continuemos a viver essa farsa que se tornou nossa democracia. E não estou aqui defendendo uma subversão a ela, mas sim a radicalização de seus princípios. Democracia não significa permissividade, nem impunidade, muito pelo contrário, pois trata-se de uma forma de governo frágil e sujeita a manipulações populistas. Demagogos, de um lado, e autoritários, de outro, não faltam a tentarem diuturnamente destruí-la.

Dessa maneira, é necessário reforçar a defesa da ordem democrática em pelo menos três aspectos: liberdade de imprensa e manifestação, responsabilização política e criminal de infratores poderosos e reforma do sistema político-eleitoral. Quanto ao primeiro, antes de mais nada, é preciso deixar claro que “imprensa” significa o conjunto de órgãos de comunicação, e não um jornal ou TV específicos. Órgãos de imprensa podem ser, ou realmente são muitas vezes, tendenciosos e mentirosos, mas é o conjunto de informações livremente veiculadas que torna o jornalismo imprescindível para a democracia.

Isso não significa que veículos e jornalistas não devam responder por seus abusos, mas estes devem ser verificados em cuidadosos procedimentos judiciais posteriores à notícia, pois censura prévia, tal como tentado por Alexandre de Moraes contra esta mesma revista Crusoé, é uma forma de calar e impedir a livre circulação de ideias e fatos. Especialmente em um tempo de mentirosos e trapaceiros é que uma imprensa livre se torna o único meio para revelar mentiras e trapaças.

Importante também é acabar com a impunidade de poderosos no Brasil. Ter poder em nosso país é passaporte livre para a corrupção e o abuso, o que é percebido claramente pela população, que passa a desacreditar nas instituições, como podem atestar as diversas pesquisas sobre a confiança dos brasileiros. Quando tantos que deveriam ser punidos são absolvidos ou têm seus processos anulados em acórdãos e procedimentos administrativos escandalosos (e sigilosos, como no caso do general Pazuello), o que fica para a população é que vale a pena ser desonesto, desonrado e mentiroso, pois estes, no final, são aqueles que se dão bem.

Por último, mas não a última das coisas necessárias para uma revolução democrática, é preciso reformar nossa política com a extinção do voto proporcional para as eleições para os órgãos legislativos, bem como com a redução significativa do número de partidos políticos por meio de uma cláusula de barreira. Não é possível termos tantas partidos sob nomes irônicos e pretensiosos que apenas revelam sua hipocrisia e mentira. Além disso, é preciso estabelecer regras claras de transparência e democracia partidárias, eliminando tantas agremiações que nada mais são do que feudos de famílias de caciques.

Precisamos, enfim, que a população volte a acreditar nas instituições por elas refletirem o mais sincera e transparente possível os princípios de nossa democracia e república. “Sei que a verdade é difícil/e para alguns é cara e escura./Mas não se chega à verdade/pela mentira, nem à democracia/pela ditadura”.

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