RuyGoiaba

A burrice dos especialistas

11.06.21

Uma das poucas coisas divertidas da semana que passou foi conhecer a opinião de torcedor do Bonsucesso que Richard Dawkins — grande biólogo evolucionista e grande especialista em passar vergonha nas redes sociais — tem sobre A Metamorfose, o clássico de Franz Kafka. Traduzo aqui tuíte do eminente cientista no dia 5: A Metamorfose de Kafka é considerada uma importante obra de literatura. Por quê? Se for ficção científica, é ficção científica ruim. Se for uma alegoria, como A Revolução dos Bichos [de George Orwell], é alegoria de quê? As respostas acadêmicas variam de um freudismo pretensioso a um feminismo rebuscado. Eu não entendo. Onde estão as roupas do imperador?”. (Não conheço essas interpretações feministas de A Metamorfose, mas neste vasto mundo tudo é possível — vai que alguém “leu” Gregor Samsa como uma barata fêmea.)

De fato, o tuíte parece um jogo dos sete erros: Kafka publicou sua novela em 1915, antes mesmo de nascerem os principais nomes da ficção científica, como Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Ray Bradbury. A comparação com a sátira política do livro de Orwell é completamente despropositada. Além disso, como apontou um crítico no Twitter, é uma ideia rasteiramente utilitária de arte, de querer entender “para que serve” uma obra (como se Shakespeare, por exemplo, tivesse escrito Romeu e Julieta para advertir os adolescentes sobre os riscos de beber veneno). Não obstante, Dawkins escreve com a empáfia de quem pontifica sobre o assunto mesmo sem saber uma vírgula do que está falando, o que ele certamente censuraria em quem se metesse a fazer biologia evolutiva freestyle.

Aliás, o biólogo é reincidente e já disse coisas muito piores do que esse veredicto sobre Kafka — de quem, é óbvio, ninguém tem obrigação de gostar. Em uma palestra, sustentou que contos de fadas são “ruins” para crianças porque é “muito improvável estatisticamente” que um príncipe vire sapo; além disso, é implausível que um urso, um porco, um burro e um tigre “dividam o mesmo ecossistema”, como nas histórias do Ursinho Pooh. Sim, parece uma paródia escrita por The Onion, mas o cara declarou isso A SÉRIO em 2014. Como disse uma amiga, quero só ver quando Dawkins descobrir as histórias da Disney, em que o cachorro Pateta tem cão de estimação (Pluto), corteja a vaca Clarabela e é amigo de Pato Donald e Mickey Mouse. “Está cientificamente errado! Não pode!”

Como se sabe, Richard Dawkins é também uma espécie de Testemunha de Jeová do ateísmo militante. Isso me faz supor que encare contos de fadas como “porta de entrada” para drogas mais pesadas, como religião — o que é até mais cretino do que o mesmo raciocínio aplicado à maconha. Mas o biólogo é o exemplo perfeito do que Ortega y Gasset chamava “barbárie da especialização”: o próprio avanço da ciência, que nos deu coisas prodigiosas como vacinas contra a Covid em tempo recorde, obriga a que o cientista seja uma pessoa que sabe cada vez mais sobre cada vez menos (isto é, seu campo específico de estudo). Ocorre que, em alguns casos, o homem de ciência acredita que a autoridade em sua área específica o credencia a falar qualquer coisa sobre qualquer outra — o que o mundo das redes sociais, em que todo idiota conectado à internet tem direito a seu caixotinho e seu megafone particular, torna exponencialmente pior.

(Vale transcrever este trecho de Ortega y Gasset sobre o assunto, que está em A Rebelião das Massas, livro de 1929: “Teremos de dizer que [esse cientista] é um sábio-ignorante, coisa extremamente grave, pois significa que se trata de um senhor que se comportará em todas as questões que ignora não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem é um sábio em sua questão especial (…). A advertência não é vaga. Quem quiser pode observar a estupidez com que pensam, julgam e atuam hoje na política, na arte, na religião e nos problemas gerais da vida e do mundo os ‘homens de ciência’”.)

Reconheço, no entanto, que o problema do Bananão é em geral o oposto: acreditar que um especialista não sabe nada NEM sobre a própria área e que a opinião do Zé Taxista sobre o “risco das vacinas” e a “grande conspiração da indústria farmacêutica” vale tanto quanto a dos cientistas que passaram a vida estudando o assunto. E, como o Brasil capricha, às vezes ainda consegue juntar o pior desses dois mundos: é só pensar nos nossos médicos cloroquiners e nos nossos virologistas antivaxxers. Deve ser o Deus do Velho Testamento — aquele em que Dawkins não acredita — fazendo economia de pragas: quem precisa mandar dez quando apenas uma, a burrice, obtém o mesmo efeito devastador?

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A GOIABICE DA SEMANA

Concedo que o hit da semana foi a fala de Alberto Fernández sobre mexicanos saindo dos índios, brasileiros da selva e argentinos, essa gente chique, dos barcos que vieram da Europa — infelizmente, esta revista de família não me permite reproduzir os melhores comentários nas redes sobre de onde saíram os argentinos. Ainda assim, voto na presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, Renata Gil, pelo artigo em que defendeu as férias de 60 dias para os juízes: ela alegou que com 30 dias de descanso, como é o comum entre os mortais, o Judiciário ficaria “mais lento”. A conclusão é óbvia: dar logo férias de 360 dias para a turma, para termos juízes mais supersônicos do que o Concorde.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéSó essa senhora vendada na frente do STF não tem direito a dois meses de férias

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