SergioMoro

Silêncio ou mentira?

04.06.21

O grande interesse sobre a CPI da Covid instaurada no Senado Federal e a ampla atenção dada aos depoimentos reavivaram, entre nós, os debates sobre o direito ao silêncio. É um direito muito conhecido, mas um pouco controverso: por qual motivo, afinal, deve existir um direito ao silêncio? Ele também contempla um direito à mentira? O investigado pode, além de calar-se, mentir?

Esse espaço na Crusoé não é destinado a grandes teses jurídicas, mas, abusando da paciência do leitor, resolvi, sem apelar para o juridiquês, tratar do assunto de modo a torná-lo interessante e compreensível.

A origem do direito ao silêncio tem um pé na religião. Um comentário de São João Crisóstomo, do século IV, sobre uma carta de São Paulo aos hebreus é usualmente apontado como fonte originária do direito ao silêncio. No comentário, os cristãos são instados a revelar seus pecados, via confissão, perante Deus. O mandamento gerou o argumento de que, se a pessoa deve revelar suas faltas a Deus, não deveria ser obrigada a confessá-las em público ou às autoridades.

A alegação evoluiu para repudiar que as pessoas fossem colocadas em um cruel dilema moral diante das autoridades: confessar seus crimes e assim condenar o seu corpo – lembrando que, historicamente, as penas no processo penal eram usualmente morte ou açoites – ou mentir sobre os seus crimes e assim condenar a sua alma, não devendo aqui ser esquecido que se jurava perante Deus ou a Bíblia e as convicções religiosas à época eram muito mais fortes do que no presente. Então, passou-se a entender que o investigado não deveria ser obrigado a depor no processo sob juramento. Não era bem um direito ao silêncio, pois ele precisava falar para se defender, já que a presença dos advogados nos julgamentos penais não era comum antes do século XIX.

Em um desdobramento histórico no sentido contrário, o direito ao silêncio foi anulado na Europa Continental entre os séculos XIII e XVIII, quando foi admitida a utilização da tortura ou dos tormentos para obter confissões involuntárias. Já no Direito anglo-saxão, a prerrogativa seguiu preservada, pois não se admitia tortura nas Cortes da Common Law. Surgiram casos célebres de investigados que invocaram e exerceram o direito ao silêncio, como Thomas Morus e John Lilburne. Com o tempo, essa garantia passou a ser associada à liberdade religiosa e de consciência, inclusive de criticar o governo e as autoridades, já que o processo penal era utilizado não raramente para buscar conformidade religiosa e punir o dissenso político. Provavelmente, essa é a principal razão da força ainda atual do direito ao silêncio em nossas consciências, ou seja, a sua vinculação a essas liberdades fundamentais.

Com o progressivo repúdio à tortura e a sua abolição, o direito de manter-se silente ressurgiu com força na Europa continental, até como uma reação aos excessos anteriores. Mas foi ainda o direito anglo-saxão o seu local de maior força, tendo ele sido incorporado na Constituição norte-americana como um dos direitos fundamentais ainda em 1791. A título comparativo, nos textos constitucionais brasileiros ele só surgiu em 1988.

Mais recentemente, à prerrogativa de ficar calado passaram a ser até mesmo agregadas advertências ao investigado de que ele pode exercê-la sem sofrer consequências em razão disso. São as famosas advertências de Miranda criadas pela Suprema Corte norte-americana no precedente Miranda vs. Arizona, de 1966, e que se espalharam pelo mundo e se popularizaram pelos filmes policiais norte-americanos.

Mas é também no Direito anglo-saxão que o direito ao silêncio é tratado de uma forma diferente do que foi utilizado em alguns outros países, como no Brasil. Entende-se que esse benefício permite que o investigado se cale no processo penal. Ele não é obrigado a falar e do silêncio não se pode inferir a sua culpa. Mas se ele resolver depor, sob juramento, ele responde pelo crime de perjúrio quando mentir. Afinal, é uma escolha dele falar e, se ele optou por depor, renunciou ao direito ao silêncio e aos privilégios que o acompanham.

Alguns estudiosos alegam que a possibilidade de o investigado depor sob juramento surgiu de uma reivindicação dos próprios advogados de defesa que entendiam que os jurados faziam uma inevitável comparação negativa entre o depoimento do investigado, já na condição de acusado, que não prestava o juramento de dizer a verdade, e o depoimento das testemunhas, muitas vezes a vítima, sempre sob juramento. Atendida a reivindicação, com o bônus veio o ônus.

No Brasil, a Constituição de 1988 e a lei processual penal preveem o direito ao silêncio para o investigado. No Código Penal, há previsão do crime de perjúrio, mas ele só abrange o depoimento falso da testemunha ou do perito. Não contempla o investigado. Isso não significa que há um direito de mentir, mas apenas que a mentira do investigado não é punida como crime. Alguns podem achar a diferença muito sutil, mas não se trata da mesma coisa.

Exerci por 22 anos a magistratura e tomei muitos depoimentos. Minha impressão sempre foi a de que faz bem ao investigado dizer a verdade se for inocente e a de que ele age melhor se fica em silêncio quando é culpado. A mentira nunca é uma conduta digna, ainda que o investigado possa ter motivações fortes para faltar com a verdade. É também uma sabedoria prática dos advogados de defesa de que o investigado deve calar-se caso, sendo culpado, não tenha um bom álibi. Afinal, se ele for surpreendido na mentira, perde a credibilidade.

Embora eventuais mentiras contadas em uma audiência pública por pessoas investigadas possam trazer revolta aos espectadores, não há o que fazer a esse respeito, pois a lei brasileira não pune a mentira de quem é investigado. Para a testemunha é diferente. Mas, se a testemunha estiver na condição real de investigada, ela terá o mesmo direito. Não deixo, porém, de observar que muitos talvez fizessem melhor se simplesmente ficassem em silêncio, exercendo dignamente o direito de tão longa tradição. Lembramos de Thomas Morus e de John Lilburne de uma forma muito positiva, mas não há recordação favorável de pessoas que mentiram sob juramento. Não é sem motivo o ditado conhecido de que o silêncio vale ouro.

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