Sarapatel com Aras
Menos de dois meses após assumir o comando da Procuradoria-Geral da República, Augusto Aras pôs na rua a mais emblemática operação realizada em seus quase dois anos de gestão. Batizada de Faroeste, a ação deflagrada em novembro de 2019 para desbaratar um esquema de venda de sentenças no Tribunal de Justiça da Bahia causou enorme alvoroço. De pronto, afastou um grupo expressivo de magistrados acusados de corrupção na terra natal do procurador. Uma parte dos investigados foi presa em seguida. Hoje, depois de sete fases da operação, cerca de 30 suspeitos já foram acusados formalmente e respondem a processo. Três desembargadoras permanecem na cadeia. No início de maio, uma delas partiu para o ataque contra a PGR, em uma iniciativa incomum para réus e investigados já enormemente encalacrados. De dentro da cela onde está presa, em Brasília, a magistrada pôs no papel graves acusações que enredam em uma trama nebulosa o próprio Augusto Aras e a subprocuradora Lindôra Araújo, destacada por ele para conduzir a operação.
É um daqueles casos em que, dada a gravidade das suspeitas, deveria ser de interesse das autoridades envolvidas ordenar uma apuração minuciosa para esclarecer tudo – nem que seja para, ao final, concluir que se trata de uma acusação infundada e, assim, ampliar o já vasto rol de tipos penais que pesam sobre a denunciante. A história está longe de ser trivial. A começar por ser protagonizada por representantes do estado e da própria máquina judicial. De um lado, embora esteja presa e respondendo por crimes graves, quem acusa é uma desembargadora de um importante estado da federação. De outro, estão o chefe do Ministério Público Federal e integrantes de sua equipe, bem como advogados que, sabidamente, são ligados a ele. Nas últimas semanas, Crusoé procurou rigorosamente todos os envolvidos e, a partir desse esforço de apuração, decidiu publicar a presente reportagem por entender que: 1) há interesse público na trama por trás da carta, que até então estava limitada a círculos restritos do poder; e 2) é um episódio que precisa ser definitivamente esclarecido a partir de uma investigação oficial.
Em 67 páginas escritas à mão, a desembargadora Ilona Márcia Reis, de 71 anos, relata ter sido alvo de uma série de atos de coação e extorsão antes de sua prisão, em dezembro de 2020, que teriam sido praticados por um advogado ligado a Aras. Crusoé obteve uma cópia da carta. Datado de 5 de maio, o papelório foi redigido pela desembargadora a partir da cela especial que ela ocupa, dentro de um batalhão da Polícia Militar do Distrito Federal que funciona em um dos anexos do presídio da Papuda. Ilona Reis foi transferida para o local há pouco mais de cinco meses. A desembargadora está presa sob a acusação de ter recebido uma propina de 450 mil reais por meio de dois advogados para assinar decisões favoráveis em processos envolvendo a posse de terras na região oeste da Bahia. Na denúncia contra ela, a Procuradoria-Geral da República anexou cópias de depósitos de dinheiro em espécie na conta da magistrada em data próxima da decisão. A acusação também sustenta que, após ser deflagrada a primeira fase da Faroeste, ela tentou se afastar dos processos sob investigação, deixou de frequentar seus imóveis e passou a andar em um carro com placa adulterada para despistar os investigadores.
As tratativas teriam ocorrido ainda na fase inicial da Operação Faroeste, quando a desembargadora ainda não sabia ao certo até onde a investigação poderia comprometê-la. Ela diz que, após os primeiros contatos, chegou a dar a César Oliveira 6 mil reais para uma viagem dele a Brasília cujo objetivo seria “conversar com Augusto Aras”. Depois disso, sempre segundo o relato constante da carta, ela diz ter assinado um contrato de honorários no valor de 100 mil reais – não com o próprio César, mas com um advogado indicado por ele. Esse passo adiante teria sido dado a partir da informação de que a situação ficara “complicada” com o avanço das investigações. Àquela altura, os bastidores do Judiciário baiano ferviam com rumores sobre delações premiadas e prisões de magistrados que estariam por vir. Uma dessas especulações envolvia um operador que teria livre acesso ao gabinete da própria Ilona Reis e tinha fechado um acordo com a PGR para contar tudo.
A desembargadora afirma que as tratativas em torno da suposta cobrança de 1 milhão de reais para livrá-la não foram adiante porque a conversa com César Oliveira, o advogado amigo da família Aras, teria azedado. Oliveira, afirma Ilona, ficou indignado quando ela pediu para parcelar os 100 mil reais do primeiro contrato de honorários. E teria, então, questionado: se ela não tinha condições de arcar com esse valor, como poderia chegar à cifra de 1 milhão de reais que seria necessária para resolver de vez a situação?
Eis o que ela escreveu: “No dia seguinte fui chamada de volta pelo advogado César Oliveira, em sua residência, Rua do Ébano, Salvador, Bahia, atrás do Shopping Iguatemi. Lá chegando ele me questionou de forma irônica e disse: ‘Dra… como é que uma desembargadora não tem dinheiro?’. (…) Respondi: Eu vivo do meu salário. Ele riu num tom de deboche e incredulidade e disse: ‘Aqueles 100 (cem) mil reais são honorários contratados com o advogado; a senhora ainda teria de pagar 1 (um) milhão de reais aqui, e isso só para começar’. Ficou claro que o aqui se referia a ele, e o mencionado 1 (um) milhão de reais seria para iniciar o tráfico de influência. Prosseguindo, ele disse: ‘Eu falei com Guga que você não tinha cem mil reais quanto mais um milhão de reais iniciais’, e me mostrou uma conversa de texto entre ele e o PGR Augusto Aras, a quem sempre se refere informalmente como Guga”.
A despeito da irritação em razão do pedido de parcelamento do contrato de honorários que lhe foi sugerido, César Oliveira teria voltado a procurar novamente a desembargadora com um novo plano, segundo ela. Desta vez, afirma, ele teria proposto que ela fechasse uma colaboração premiada e delatasse um grupo de 15 pessoas entre as quais estariam outros desembargadores e o senador petista Jaques Wagner, que a nomeou para o TJ quando era governador. Escreve a desembargadora: “(César Oliveira) Disse que iria me ajudar como um favor, mas eu teria de pagar de outra forma, isto é, eu deveria delatar pessoas por ele indicadas, pessoas que depois eu percebi serem seus desafetos”. Na carta ela lista os nomes das pessoas que deveriam ser delatadas. Além de Jaques Wagner e de outros integrantes do tribunal, diz ela, estavam ainda o deputado federal Ronaldo Carletto, do Progressistas (ex-PP) e o empresário Carlos Suarez, um dos fundadores da empreiteira OAS. Segundo Ilona, os alvos da delação que ela teria que fechar tinham em comum o fato de serem adversários do grupo político ligado a Aras dentro do TJ baiano. A magistrada relata o contexto em que cada um deles deveria ser mencionado no acordo. No caso do senador petista, por exemplo, ela teria que falar da “ingerência” dele no tribunal, para o qual nomeou nove desembargadores durante o período em que governou a Bahia, entre 2007 e 2014.
A magistrada baiana afirma ainda que, para ilustrar o que poderia fazer em favor dela junto à PGR, César Oliveira teria citado o caso de uma outra desembargadora também encrencada a partir das investigações da Operação Faroeste. Trata-se de Sandra Inês Moraes Rusciolelli, presa em março de 2020 sob a acusação de ter recebido 2,4 milhões de reais de propina com venda de sentenças. Em uma ação controlada, a Polícia Federal flagrou o filho de Sandra Rusciotelli recebendo 250 mil reais em troca de decisão dela em favor de uma empresa. Segundo Ilona, o advogado amigo de Aras disse o seguinte sobre o caso de Sandra: “Foi pega com a boca na botija, mas Guga (Augusto Aras) e eu vamos arrumar a vida dela e do filho”. Na mesma conversa, conforme o relato de Ilona Reis, César Oliveira disse que tanto Sandra Rusciotelli quanto seu filho já tinham contratado um advogado ligado a ele e estavam em vias de ter a situação resolvida. Não se sabe se foi exatamente graças à interveniência do advogado, mas a “profecia” de certa forma se cumpriu. Em setembro passado, mãe e filho conseguiram, no STJ, o benefício da prisão domiciliar – a Procuradoria-Geral da República se posicionou a favor. Desde então circula na imprensa baiana a notícia de que ela fechou um acordo de colaboração premiada com a PGR no qual delatou 58 pessoas. Nem a PGR nem os advogados de Sandra Rusciotelli confirmam a informação.
É no contexto da suposta pressão para que também ela firmasse um acordo de delação que Ilona traz à trama o nome da subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo, braço-direito de Augusto Aras nos processos criminais que correm na PGR. Ilona Reis sustenta na carta que, no último encontro que teve com César Oliveira, o advogado exibiu mensagens que ele teria trocado com a própria Lindôra. A subprocuradora teria dito nessas mensagens que a magistrada deveria viajar até Brasília para que as duas tivessem uma conversa. A recomendação foi seguida por Ilona. Dias depois, ela embarcou para a capital federal para se encontrar com Lindôra. A PGR confirmou a Crusoé a existência da audiência. Ilona Reis diz que foram dois encontros com a subprocuradora, ambos no primeiro semestre de 2020. Além dela, participaram das conversas o também procurador da República Hebert Reis, que integrava o grupo de trabalho da Lava Jato na PGR, e o promotor de Justiça da Bahia João Paulo Schoucair, que auxiliava Lindôra nas apurações relacionadas à Faroeste. A desembargadora diz que as conversas se deram sob um clima de tensão. Ela relata que foi a Brasília sem advogado e que, diante de Lindora, Hebert e Schoucair, disse que estava ali por orientação de César Oliveira. Os três disseram não conhecê-lo, segundo ela. “Pensei em dizer que estava ali coagida, mas resolvi ficar calada porque me encontrava num ambiente hostil e de terror”, escreveu.
Ilona Reis confirmou a Crusoé a autoria da carta. No batalhão da PM contíguo ao complexo penitenciário da Papuda, a desembargadora tem passado os dias em uma sala de estado maior reservada a autoridades. Ela divide o espaço com uma colega de tribunal, a também desembargadora Lígia Ramos Cunha, acusada de envolvimento no mesmo esquema de venda de sentenças. No início deste ano, Ilona teve a prisão temporária convertida em preventiva, o que significa que não há prazo para que ela deixe a cadeia. Após ser presa, ela ingressou com um pedido de aposentadoria, mas o processo foi suspenso por ordem do STJ. A magistrada aguarda o julgamento de um habeas corpus no Supremo Tribunal Federal, distribuído ao ministro Edson Fachin. A PGR já se manifestou nos autos, sustentando a necessidade de manutenção da prisão porque a desembargadora tem um “histórico de crimes” e que só a cadeia “pode evitar novos ilícitos”.
Advogado criminalista, César Oliveira é amigo de infância de Augusto Aras. Os dois foram contemporâneos em um colégio de padres em Feira de Santana, na década de 1970. Roque Aras, o pai do procurador-geral, foi advogado de empresas da família Oliveira, na mesma cidade. Quando Augusto Aras assumiu a PGR, em setembro de 2019, César Oliveira compareceu à cerimônia de posse e teve direito a um tratamento especial. Aras fez questão de apresentá-lo a outras autoridades presentes, como o ministro do Supremo Dias Toffoli.
Roque Aras, o pai do procurador-geral, afirmou a Crusoé que tem uma relação “muito esporádica” com César Oliveira e que não conhece pessoalmente a desembargadora Ilona Reis: “Não a conheço, nunca tive relacionamento com essa senhora”. Ele diz torcer pelo sucesso da Operação Faroeste porque ela está combatendo a corrupção no Judiciário da Bahia, mas assegura que sempre manteve distância do caso para não prejudicar o trabalho do filho.
Eis a íntegra da nota enviada pela PGR: “A desembargadora Ilona Reis está presa desde dezembro de 2020 na Papuda, em Brasília, por decisão da Corte Especial do STJ, da relatoria do ministro Og Fernandes, da Operação Faroeste. A prisão já foi reiterada pela Corte Especial do Tribunal após análise de farto acervo probatório documental e pericial. As provas apontam para a existência de uma organização criminosa que vendia sentenças, formada por desembargadores, advogados e autoridades policiais, fazendo parte da apuração inclusive crimes de homicídio. Na condição de investigada, Ilona Reis pediu para ser atendida na Procuradoria-Geral da República. A audiência foi realizada na Assessoria Jurídica Criminal e, conforme os padrões de atendimento em casos desse tipo, na presença de vários procuradores. Na oportunidade, a desembargadora manifestou interesse em fazer acordo de colaboração premiada. Embora tenha havido um segundo encontro também a pedido da desembargadora, o acordo não foi firmado. De forma paralela, em decorrência de diligências concluiu-se a coleta de provas contra a investigada e o pedido de prisão foi encaminhado ao STJ. Surpreende que a alegação da agora ré não tenha sido apresentada no processo, mas na imprensa. O PGR repele as insinuações.”
Espera-se que, a partir de agora, ao menos uma apuração formal seja aberta para passar a história a limpo, ouvindo oficialmente as partes envolvidas e, por meio dos instrumentos legais de investigação, averiguando cada passagem da acusação. O primeiro a ter interesse em esclarecer os fatos deve ser o próprio procurador-geral, chefe maior do Ministério Público Federal, sobre quem não podem pairar suspeitas de qualquer tipo. Se a desembargadora mentiu na carta, ela precisa ser exemplarmente punida. Se o que ela conta tem fundamento, é imperioso que os envolvidos sejam instados a se explicar e, se houver culpa, sofram as devidas sanções. Certo é que, na trama, há várias questões que precisam ser esclarecidas. Será que Aras está sendo vítima de vingança? Será que o nome dele foi usado por advogados amigos? Houve, de fato, pressão indevida sobre a magistrada durante as investigações? O sarapatel merece respostas.
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