MarioSabino

Pazuello é a desordem nos quartéis

04.06.21

Nesta semana que chega ao fim, Eduardo Pazuello ganhou dois presentes. Jair Bolsonaro lhe deu o cargo de secretário de Estudos Estratégicos da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos, uma redundância atroz vinculada à Presidência da República, como recompensa pelo general ter sido seu capacho e, consequentemente, o pior ministro da Saúde da história do Brasil. Não fosse o bastante, dois dias depois, o Exército presenteou Eduardo Pazuello com o arquivamento do processo por transgressão disciplinar contra ele, como reconhecimento pela transgressão disciplinar que o general efetivamente cometeu, ao participar de um ato político no Rio de Janeiro, aquela “motociata” organizada para apoiar o sociopata que despreza as mais de 460 mil mortes por Covid. O comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, rasgou o regulamento que proíbe militares da ativa de participar de atos políticos e “acolheu os argumentos apresentados por escrito e sustentados oralmente pelo referido oficial-generalEm consequência, arquivou-se o procedimento administrativo que havia sido instaurado“, segundo diz a nota divulgada por quem deveria ter punido Eduardo Pazuello.

Os, digamos, argumentos do general bolsonarista são de um cinismo que deveria ter resultado em mais rigor na sua punição. Eduardo Pazuello disse que estava participando apenas de um passeio motociclístico com o presidente e, assim do nada, foi chamado por Jair Bolsonaro para subir no trio elétrico de onde o chefão do Planalto discursou para a patuleia. Como mantém laços com Jair Bolsonaro, ele não poderia recusar o convite. E ademais — atenção para a cereja do bolo cínico–, já que o presidente não tem filiação partidária, ele não pode ser considerado político. O general bolsonarista embrulhou esses, digamos, argumentos num artigo do mesmo regulamento que ele infringiu, segundo o qual a “honra pessoal” do militar deve ser considerada — a saber, “o sentimento de dignidade própria, como o apreço e o respeito de que é objeto ou se torna merecedor o militar, perante seus superiores, pares e subordinados”.

Depois do “passeio motociclístico” de Eduardo Pazuello com Jair Bolsonaro, escrevi em O Antagonista que, se o general bolsonarista não fosse objeto de punição, o Exército sairia enfraquecido institucionalmente do episódio, “em outro capítulo da desmoralização que vem sendo perpetrada, para não dizer construída, por Jair Bolsonaro. O presidente da República tenta completar como presidente o serviço que iniciou ainda como militar da ativa, quando incitou a soldadesca à sublevação”. Afirmei que Jair Bolsonaro “tenta fazer terra arrasada da hierarquia das Forças Armadas, interferindo politicamente no seu comando e fazendo proselitismo com as baixas patentes” e que o fato de Eduardo Pazuello ser um general complicava ainda mais esse quadro.

Completei:

“A permanência do ex-ministro nos quadros da ativa, mesmo depois de ter infringido o regulamento do Exército, transmitirá a impressão de que não há mais disciplina nos quartéis — ou que ela é seletiva, aplicando-se apenas a alguns, o que dá na mesma. A ida de Eduardo Pazuello à manifestação de ontem constitui fato gravíssimo, com implicações que podem ser desastrosas para a manutenção do respeito estrito à hierarquia, princípio básico das Forças Armadas como um todo. Um general é, antes de tudo, um soldado que ascendeu na carreira porque, antes de tudo, soube acatar o regulamento. Sem regulamento, não há ordem a ser cumprida, mas desordem a ser instalada. E, na desordem, não há hierarquia, mas aventureirismo.

A cúpula do Exército não tem de ficar preocupada com as consequências políticas de uma punição a Eduardo Pazuello. Aliás, como comandante supremo das Forças Armadas, o presidente da República deveria ser o primeiro a observar regras. A cúpula do Exército deve preocupar-se é com a instituição, que já sofreu imensos danos de imagem durante a permanência do aloprado bolsonarista à frente do Ministério da Saúde. Passar Eduardo Pazuello à reserva é o mínimo a ser feito. O máximo seria o necessário.”

Reafirmo cada vírgula do que escrevi.  Acrescento que o fato de o general bolsonarista ter se safado de punição, e de maneira tão cínica, deixa em situação bastante delicada o alto oficialato que deveria zelar pela manutenção da disciplina dentro dos quartéis. A decisão do comandante Paulo Sérgio Nogueira, acuado pelo pedido do presidente para não punir o infrator, escancara o portão para que o proselitismo se alastre entre o pessoal da farda. Ganham Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello; perdem o Exército, também afrontado pela decisão do presidente de dar um cargo ao ex-ministro da Saúde enquanto o processo disciplinar contra ele ainda estava em aberto, e as Forças Armadas em geral, aquelas que permanecem imunes a tentações golpistas. Espera-se, ao menos, que o general bolsonarista passe logo à reserva, numa solução de compromisso. Se isso não ocorrer, é porque realmente há algo de muito podre no Reino da Dinamarca. Eu ia escrever sobre William Shakespeare, mas outra vez fui bruscamente interrompido pelo Brasil.

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