O que vem depois
Ao longo de dezoito meses, a pandemia de Covid transformou a maneira como vivemos. Apertos de mão hoje são raros, encontros entre várias pessoas são vistos com receio e profissionais se adaptaram para trabalhar de casa. Mas, além das alterações já sentidas, há outras que apenas começaram a ser delineadas e que produzirão efeitos por décadas ou gerações. Analisando os períodos que se seguiram a pandemias do passado, como a peste negra (século XIV), a gripe espanhola (1918 e 1919) e epidemias mais recentes, cientistas e economistas já conseguem traçar as mudanças que estão por vir.
O aumento da religiosidade é uma delas. Em tempos como o atual, a fé auxilia a lidar com a perda de pessoas queridas e com a sensação angustiante da falta de controle sobre o cotidiano. Em janeiro, uma pesquisa da Pew Research revelou que quase um terço dos americanos acreditam que a pandemia reforçou sua fé. Mas a religião pode ter ainda um outro papel, que é o de ajudar a reorganizar a sociedade após uma fase de elevada mortandade. “Em vários países, muitas pessoas não poderão contar mais com seus pais ou avós, pois vários idosos estão sucumbindo à pandemia. Para fazer tarefas do dia a dia, como cuidar das crianças ou conversar nos dias de folga, eles precisarão contar com indivíduos de fora da família”, diz o cientista político Gary Richardson, professor de história da economia na Universidade da Califórnia, em Irvine.
Segundo Richardson, as religiões deverão reunir muitas pessoas que tiveram laços familiares rompidos. Foi isso o que a Igreja Católica fez após a peste negra, no século XIV, quando algumas cidades europeias chegaram a perder 60% da população. Ao pesquisar esse período, Richardson descobriu que a Igreja passou a dar mais ênfase ao Novo Testamento, que traz uma forte mensagem para que as pessoas se juntem em congregações e colaborem entre si, independentemente de grau de parentesco. “Na próxima geração, esse tipo de dinâmica, presente também entre judeus e evangélicos, ficará mais popular em países cuja população idosa foi muito atingida, como a Itália, a Espanha e a Índia”, diz Richardson.
Outro fenômeno que está ganhando força e deve se estender por décadas é, infelizmente, o preconceito contra os asiáticos. Como a pandemia surgiu em Wuhan, na China, os chineses foram responsabilizados pela tragédia global. Além deles, outras pessoas de origem asiática também começaram a ser hostilizadas. Nos Estados Unidos, o número de ataques de ódio contra asiáticos aumentou 189% no primeiro trimestre deste ano, em relação ao mesmo período de 2020. Em março, um jovem matou oito pessoas em Atlanta. Seis das vítimas eram asiáticas — duas chinesas e quatro sul-coreanas. Na Itália, quando só tinham sido relatados dois casos de Covid, foram reportados casos de xenofobia contra chineses. Lojas de asiáticos ficaram vazias e chineses foram impedidos de entrar em alguns lugares. Na França, ocorreram incidentes racistas em trens e escolas.
Em um estudo publicado em fevereiro deste ano, Le Moglie e um grupo de cientistas entrevistou americanos descendentes de imigrantes que se mudaram para os Estados Unidos depois da gripe espanhola, que ocorreu em 1918 e 1919. Eles notaram que os parentes de pessoas que viviam em países onde a pandemia esteve fora de controle e a mortalidade foi elevada tinham uma confiança menor nas instituições e nos demais. O achado surpreendente do estudo é que esse sentimento foi transmitido de pai para filho e pôde ser medido mesmo um século depois da tragédia.
Além da descrença na democracia, governantes de todos os matizes serão mais pressionados pela população. Aqueles que falharam em reduzir os casos e as mortes são os que mais devem se preocupar. Com a pandemia ceifando vidas e gerando uma grave crise econômica, muitos cidadãos passaram a entender que não há mais nada a perder. Os custos geralmente associados a participar de um protesto, como a chance de ser preso, de pagar uma multa ou de perder o emprego, dependendo do país, simplesmente deixam de existir em um cenário de catástrofe. É isso o que acontece após desastres naturais, como enchentes e terremotos.
O agravamento da desigualdade que se verifica nesses momentos é uma consequência direta da queda do PIB e do desemprego. Há, no entanto, ainda outro elemento que tem sido notado nas últimas duas décadas. Nos surtos de Sars (2003), H1N1 (2009), Mers (2012) e Ebola (2014), empresários sentiram-se compelidos a acelerar a adoção de robôs nas linhas de produção e automatizar funções que antes eram desempenhadas por funcionários pouco qualificados. Com a pandemia de Covid-19 não será diferente. Em 2020, uma enquete do Fórum Econômico Mundial revelou que metade dos diretores das grandes empresas pretende acelerar a substituição de empregos de baixa qualificação por robôs. Como lembra uma reportagem publicada recentemente pela revista Economist, máquinas não ficam doentes – e isso pode ser determinante nas escolhas no pós-pandemia.
Ao elevar a produção, ao mesmo tempo em que geram desemprego entre os menos escolarizados, os robôs aumentam a desigualdade. Políticas inteligentes, como investimentos pesados em educação, podem evitar que esse quadro de insegurança e incertezas se amplie. Os governantes serão para fazer isso.
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