RuyGoiaba

O banheiro público das redes sociais

04.06.21

Como já contei aqui, estudei jornalismo em uma universidade pública, na qual tive alguns bons professores e outros facilmente classificáveis entre os mais picaretas do mundo: se houvesse Olimpíada da picaretagem, eles seriam ouro para o Brasil na certa. Foi entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990, dos estertores inflacionários do governo Sarney ao pós-confisco da gestão Collor, uma época da qual JAMAIS pensei que sentiria alguma saudade — e, no entanto, aqui estamos. Não existia internet, nem celulares. Computadores existiam, mas quase nenhum no nosso departamento, e não estavam à disposição dos alunos: para nós, o máximo da tecnologia eram as máquinas de escrever elétricas.

(Parêntese só para dizer que eu, que detesto bancar o velho nostálgico, lamento que os jovens de hoje não possam experimentar a adolescência fazendo todas as cretinices típicas da idade sem que elas sejam registradas pelo celular, jogadas na internet e exibidas no TikTok dos amigos para a sua perpétua vergonha. Pensando bem, até fiz poucas coisas cretinas na época; às vezes dá vontade de voltar no tempo para cometer mais algumas. Felizmente, passa logo.)

Havia, porém, uma pré-, ou proto-, rede social bastante popular: as paredes do banheiro masculino da faculdade, que eram rabiscadas com caneta de alto a baixo, para o desespero dos faxineiros. Uma vez eu e um ou dois colegas entramos no banheiro feminino — com estrita intenção investigativa — e constatamos que as paredes não tinham quase nada rabiscado: mais espertas, as mulheres certamente preferiam a velha rede social oral, sem deixar vestígios (ainda que a nossa rede social escrita tivesse a vantagem do anonimato).

Como no Twitter de hoje, os frequentadores do banheiro “postavam” piadas e pornografia, falavam mal da vida alheia — com destaque para alguns dos professores picaretas — e respondiam uns aos outros. Por exemplo, alguém foi lá e escreveu “banheiro: manifestação de cultura popular”. Outro alguém, mais sensato, riscou o “popular”, puxou uma flechinha e respondeu “(cultura) burguesa: o povo vai no mato”. Sim, no Brasil certas coisas nunca mudam.

Até hoje, a melhor lição de ciência política que recebi, uma espécie de Maquiavel in a nutshell, veio das paredes daquele banheiro. Algum postador anônimo escreveu que o diretor da faculdade — figura notória por fazer vida acadêmica como “teórico” do jornalismo sem, aparentemente, jamais ter pisado numa redação — era “burro”. Outro alguém ponderou: “Fulano não é burro. Burro é você, que não sabe a diferença entre um filho da puta e um burro”. Essa divisão inequívoca entre burrice e safadeza serviu muito bem para entender a política brasileira (Lula, por exemplo, não é burro), pelo menos até o governo atual, que provou que altos teores de burrice e mau-caratismo podem, sim, coexistir.

Uma das desgraças desta época pródiga nelas é que, hoje, as coisas se inverteram: as redes sociais são uma espécie de banheiro público, em que as pessoas postam coisas que antes só fariam em privado, ou na privada — dando descarga e lavando as mãos, na hipótese mais otimista. E, sem as restrições impostas pelos banheiros físicos, elas postam, mostram ao mundo e ainda replicam o conteúdo das privadas alheias, dando apoio com coraçõezinhos e likes, o que talvez ajude a explicar o teor de esgoto não tratado circulando pela política brasileira atualmente. Deus me livre do “antigamente é que era bom”remember, este velho não é nostálgico. Só acho que a gente poderia usar as redes de maneira menos insalubre. Como diria Erasmo (o Carlos, não o de Rotterdam), se o Bom Ar e o mau cheiro existem, você pode escolher.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Apesar de todas as cretinices ditas na CPI da Covid e da ideia brilhante de receber uma Copa América no meio da pandemia, o troféu da semana tem mesmo de ir para o canal de TV argentino que anunciou a morte do inglês Bill Shakespeare, de 81 anos, a segunda pessoa no mundo a receber a vacina da Pfizer, como se tivesse sido a daquele outro Shakespeare — o autor de Hamlet e Romeu e Julieta, morto desde 1616. Ora, o que são quatro séculos de distância entre um Shakespeare e outro diante da imensidão da eternidade, não é mesmo? (Um dia ainda hei de seguir a sugestão de um amigo e traduzir/adaptar The Merry Wives of Windsor como As Véias Abertas da América Latina.)

John Taylor/National Portrait Gallery, London.John Taylor/National Portrait Gallery, London.Esse é o Shakespeare que NÃO tomou vacina da Covid, aquele do ‘ser ou não ser’

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