MarioSabino

Velho e cansado

21.05.21

Na semana passada, deparei com um velho. Não era muito velho, mas de uma velhice que já antecipava o advérbio de intensidade: barba de um branco que parecia ser súbito, rugas a emoldurar olhos cujas bolsas inferiores afugentavam o brilho, a pele do pescoço que começava a esmorecer, ombros que insistiam em fechar o peito a todas as possibilidades.

Era um velho de aspecto cansado, de um cansaço além da conta daquele proporcional à velhice. Como se já tivesse dito tudo o que tinha para dizer, ouvido tudo o que tinha de ouvir, e isso não o houvesse levado a outro lugar que aquele ali. Era um velho que também não tentava esconder a sua velhice interior.

O velho era eu.

Ficar velho não torna alguém melhor ou mais sábio, ao contrário do que se acredita. Assim como os canalhas, os idiotas envelhecem. A velhice pode, sim, é emburrecer ou tornar alguém tão boboca a ponto de ficar dando lição de existência pelo Twitter, usando meiguices de Mário Quintana. A única coisa que a velhice é capaz de lhe dar, mas isso depende bastante do jovem que você foi, é um acréscimo de distinção.

Ninguém precisa usar bengala para ganhar mais distinção, nem se tornar sisudo. A distinção, no caso, é resignar-se diante do que é impossível ser mudado. Não estou propondo que se transija com nada de errado, mas dizendo apenas que, ultrapassada a metade do caminho de nossa vida, você não pode mais achar que fará grande diferença sozinho ou acompanhado de ínfima minoria. O quixotesco é, antes de tudo, um sujeito ridículo porque velho. Miguel de Cervantes não teria alcançado um prodigioso efeito tragicômico com a sua obra magna, se o seu Dom Quixote fosse jovem. “Beirava o nosso fidalgo a casa dos cinquenta. Era de compleição rija, parco de carnes, rosto enxuto, grande madrugador e amigo da caça”, descreve Cervantes. Na casa dos vinte, trinta anos ou até um pouquinho mais, Dom Quixote seria apenas um desmiolado romântico sem graça. O que o torna divertidamente patético é ser um cinquentão que emula protagonistas de romances de cavalaria, salvadores de donzelas e, quem sabe, do mundo.

Como ter distinção com tantas coisas erradas ao redor, sem que implique completo conformismo? Se eu tivesse receita geral, talvez pleiteasse dividir bancada na CNN Brasil com Leandro Karnal, que aparenta ter tomado elixir da juventude. Da minha parte, só tenho a me repetir, a repetição sendo um atributo da velhice: por meio dos seus cidadãos, os países fazem opções e poucos aprendem com a experiência dos outros. Algumas escolhas os põem na rota da felicidade. No caso do Brasil, a opção pela cupidez, a corrupção, a ignorância, a ferocidade e a vulgaridade venceu.

Para mim, não é a melhor escolha, mas parece haver bastante gente feliz por aí, seja chafurdando na pobreza ou ganhando um monte de dinheiro, enquanto diz “o Brasil não tem jeito”, naquela posição sadomasoquista que abordei em artigo recente. Não serei eu a avançar de lança em riste contra o país, gritando em rádio e por meio de pontos de exclamação: estou cansado e o papel deixou de me caber, se é que um dia coube, o que mercadologicamente é ruim no ramo em que atuo. O meu distinto inconformismo consiste em criticar a paisagem aqui do meu canto, enquanto existir um canto – sem estridência, pretensão ou arrogância. O dado inescapável é que tudo o que já disse ou ouvi de certo e equivocado me levou apenas até aqui.

Ainda assim, há algo de quixotesco nesta minha velhice resignada. No epílogo da obra de Miguel de Cervantes, obrigado a permanecer na aldeia da qual saíra como cavaleiro andante, Dom Quixote decide virar pastor. Ao ouvir de sua ama e de sua sobrinha que se tratava de mais um despropósito, visto que o pastoreio era “ofício de homens robustos, curtidos e criados para tal ministério quase desde o berço e os cueiros”, ele diz: “Calai, filhas, que eu bem sei o que me cumpre. Levai-me ao leito, que me parece que não estou muito bem, e tende por certo que, seja eu agora cavaleiro andante ou pastor por andar, jamais deixarei de acudir ao que houverdes mister, como o vereis pela obra”. Jamais.

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