SergioMoro

Por uma Corte Internacional Anticorrupção

21.05.21

Em 2017, participei de um encontro na sede da American Academy of Arts and Science para debater o problema da corrupção e o seu enfrentamento. O encontro foi organizado pelo Prof. Robert I. Rotberg, autor do excelente livro The Corruption Cure: How Citizens and Leaders Can Combat Graft, no qual são examinadas diversas experiências internacionais bem-sucedidas no combate à corrupção, como as de Singapura e Hong Kong, e outras nem tanto. Participaram especialistas renomados, como Bo Rothstein, Aline Mungiu-Pippidi, Zephir Teachout e Jon Quah, entre outros, somando-se diversas visões internacionais sobre o tema. Do encontro, resultou a publicação de um volume da Revista Daedalus dedicado exclusivamente ao tema. Ela está, inclusive, disponível on-line.

Entre as pessoas presentes ao encontro, estava o juiz federal americano Mark Wolf. Eu e ele éramos os únicos magistrados presentes. Wolf tem uma extensa e produtiva carreira profissional e atuou em alguns casos rumorosos, como o que envolveu a investigação e a revelação de que um grande chefe do crime organizado de Boston, James Whitey Bulger, havia se tornado informante de alguns agentes do FBI e, em decorrência, vinha recebendo proteção inapropriada para a prática de crimes, incluindo a eliminação de seus rivais. O caso virou depois um filme estrelado por Johnny Depp (Aliança do crime, 2015).

Mark Wolf é um dos proponentes da criação de uma Corte Internacional Anticorrupção. À semelhança do Tribunal Penal Internacional, a Corte Internacional Anticorrupção teria, em escala global, jurisdição subsidiária para investigar, processar e julgar crimes de grande corrupção que não encontrassem respostas nas cortes nacionais. Os mesmos motivos que levaram à criação do Tribunal Penal Internacional estariam aqui presentes: a dificuldade ou mesmo incapacidade dos órgãos de controle nacionais de investigarem e punirem crimes de grande corrupção, já que estes são praticados por pessoas poderosas e que não raramente capturam as estruturas do Estado, inclusive os órgãos de controle, inviabilizando a sua ação.

Várias autoridades, personalidades e lideranças mundiais assinaram um manifesto internacional em favor da criação de uma corte da espécie. Diz o texto: “Nós sabemos que a Grande Corrupção – o abuso do ofício público para ganho privado pelos líderes de um país (‘cleptocratas’) – cresce em vários países e tem consequências devastadoras. Cleptocratas enriquecem ilicitamente dos trilhões de dólares que são gastos para promover a saúde pública global e combater a mudança climática. Cleptocratas estão roubando de seus países os fundos necessários para atingir as Metas do Desenvolvimento Sustentável para 2030. A Grande Corrupção mina a democracia uma vez que cleptocratas usam seu poder para suprimir a mídia e a sociedade civil, além de subverter eleições honestas. Refugiados de países falidos liderados por cleptocratas provocam crises internacionais. Revoltas contra a Grande Corrupção desestabilizam muitos países e colocam em perigo a paz e segurança mundial”.

O manifesto ainda reconhece que a grande corrupção prospera não por falta de lei, mas pela captura dos órgãos de controle: “Nós sabemos que a Grande Corrupção está florescendo, mas não por falta de leis. Cada um dos 187 países que são parte da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção tem leis que criminalizam a corrupção. Ainda assim, cleptocratas usufruem de impunidade porque eles controlam a administração da Justiça nos países que governam”.

A criação da Corte Internacional é justificada pela fragilidade das jurisdições locais em face da grande corrupção: “Como a Grande Corrupção tem consequências globais e usualmente não pode ser combatida pelos países mais diretamente vitimizados pelos cleptocratas, uma nova instituição internacional – uma Corte Internacional Anticorrupção – é necessária e justificada”.

O movimento pela criação da Corte Internacional Anticorrupção ainda está em seu início. Pode haver algum ceticismo quanto às reais perspectivas de que os líderes mundiais aceitem abdicar de parte de sua soberania para a criação de um tribunal da espécie e do qual podem tornar-se alvos. Não obstante, discuti-lo e, igualmente, debater a fragilidade das jurisdições locais contra a grande corrupção têm um mérito elevado. Além disso, buscar objetivos distantes é o primeiro passo para deles se aproximar. Digo com conhecimento de causa, pois quando a Operação Lava Jato começou, ninguém acreditava que ela poderia ir tão longe. Mas foi. Mesmo sofrendo atualmente alguns reveses políticos, a operação provou que a grande corrupção pode, mediante muito esforço institucional, ser enfrentada.

Na mesma linha da internacionalização do combate à corrupção, há uma visível tendência, decorrente da globalização comercial, de expansão das jurisdições locais sobre pessoas ou empresas estrangeiras quando o objeto é a prática da corrupção em transações comerciais internacionais. Empresas que pagam suborno a agentes públicos de outros países estão cada vez mais sujeitas a leis e a jurisdições estrangeiras. O compliance anticorrupção, tendo presentes exigências de leis de outros países, como o Foreign Corrupt Practices Act americano ou o Bribery Act do Reino Unido, passou a fazer parte da agenda mesmo de empresas que não são desses países, mas que pretendem atuar globalmente. A própria lei brasileira anticorrupção empresarial também permite processar empresas estrangeiras por “atos lesivos” – leia-se crimes – contra a administração pública. Parte-se do pressuposto de que a corrupção em transações internacionais, além de um mal em si, prejudica a competição leal do mercado e todos os interesses nacionais.

Vejo essa internacionalização do combate à corrupção como um avanço e não como uma intromissão indesejada na soberania. Soberania para receber ou pagar suborno não é desejável para qualquer país. O melhor, é claro, seria resolver essas questões através dos órgãos de controle e das cortes nacionais. Não faz mal, porém, que estímulos à construção de uma cultura de integridade e de práticas anticorrupção venham de fora. Às vezes, países, empresas e pessoas precisam de um empurrãozinho.

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