Toffoli delatado
Duas semanas antes de deixar a presidência do Supremo Tribunal Federal, em setembro do ano passado, o ministro Dias Toffoli decidiu arquivar sumariamente, em um mesmo dia, doze inquéritos abertos na corte para investigar fatos revelados na delação premiada de Sérgio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro. No rol de investigados havia deputados, senadores e ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União. A pressa e a forma como Toffoli enterrou os casos chamaram a atenção de quem acompanhava os processos de perto. O ministro se valeu da posição de presidente do STF para enviar os inquéritos abertos pelo ministro Edson Fachin para a Procuradoria-Geral da República e depois, com aval da PGR, arquivá-los antes mesmo de distribuí-los para outro magistrado assumir a relatoria, como é a regra. Esse expediente completamente atípico na corte levou a Polícia Federal a incluir um segundo capítulo, por suspeita de “obstrução de investigações”, no rumoroso pedido de abertura de inquérito feito ao Supremo há duas semanas para investigar Toffoli. Houve um segundo capítulo porque, no primeiro, é o próprio ministro Toffoli quem é delatado por Cabral por suposta “venda de decisões judiciais”.
Crusoé teve acesso com exclusividade aos arquivos sigilosos onde estão todos os anexos, depoimentos e relatórios da PF que fundamentam os 20 novos pedidos de abertura de inquérito feitos ao Supremo no dia 30 de abril, pelo delegado Bernardo Guidali, a partir da delação de Sergio Cabral. No topo da lista está o ex-presidente do STF. A informação sobre a abertura do inquérito foi revelada pelo jornal Folha de S.Paulo. Na quarta-feira, 12, Crusoé mostrou que, em seu acordo de colaboração, o ex-governador do Rio afirmou que Toffoli recebeu 3 milhões de reais para alterar seu próprio voto e mais 1 milhão de reais para conceder uma liminar que beneficiou dois prefeitos de municípios do interior do estado que apresentaram recursos ao Tribunal Superior Eleitoral contra a cassação de seus mandatos. Os fatos narrados por Cabral ocorreram entre os anos de 2014 e 2015, quando Toffoli era o presidente do TSE. Segundo o delator, os pagamentos foram feitos por meio do escritório de advocacia de Roberta Rangel, mulher do ministro, e por um ex-sócio dela, o advogado Daniane Furtado. O pedido de investigação do magistrado, um fato inédito na corte, foi encaminhado para Fachin, que em fevereiro do ano passado homologou o acordo de delação fechado por Cabral com a PF.
O ex-policial trabalhou na Secretaria de Segurança do Rio, por mais de dez anos nos governos Cabral e Pezão, Segundo a PF, Solheiro é dono de uma série de empresas de investimentos e administração de bens sediadas no mesmo endereço em Jundiaí, no interior de São Paulo. A maior delas tem como sócio um empresário que detém firmas abertas no Panamá e nas Ilhas Virgens Britânicas, dois conhecidos paraísos fiscais no Caribe. De acordo com Cabral, foi Solheiro quem acionou Roberta Rangel com a oferta de 3 milhões de reais pela mudança de voto de Toffoli. O pagamento, afirma o ex-governador, foi operacionalizado pela estrutura de recursos ilícitos de Pezão, que era coordenada pelo então secretário de Obras do Rio, Hudson Braga. A PF constatou que, de fato, Toffoli alterou o voto dois meses depois, no julgamento dos embargos de declaração, ocorrido em 23 de junho de 2015, virando o placar em favor do prefeito de Volta Redonda (assista ao vídeo mais abaixo). Por 4 a 3, o TSE reverteu a cassação de Antônio Neto. Em seu voto, Toffoli afirmou que era o caso de “reenquadramento” e “revaloração” das provas e que, com a nova análise, concluiu que “não houve abuso” por parte do prefeito na campanha. Chamou atenção dos investigadores o fato de Toffoli ter alterado o voto no julgamento de embargos de declaração, que é uma espécie de recurso usado para esclarecer alguma contradição ou omissão na decisão judicial e que não costuma mudar a convicção dos juízes.
No pedido de abertura de inquérito para aprofundar a investigação sobre Toffoli, a PF afirma que verificou a “existência de indícios mínimos que corroboraram a narrativa do colaborador (Cabral) no sentido da constituição de um grupo criminoso dedicado a venda de decisões judiciais mantido pelo Excelentíssimo Ministro Dias Toffoli”. O delegado Bernardo Guidali destaca em seu relatório duas reportagens publicadas por Crusoé, que, na visão dele, sugerem “o mesmo modus operandi” descrito por Cabral em outros casos suspeitos envolvendo Toffoli – repasses de dinheiro por meio de escritórios de advocacia. A primeira delas é a que revelou, em julho de 2018, a mesada de 100 mil reais que Roberta Rangel costumava repassar ao marido – foram ao menos 4,5 milhões de reais, no total. Em outro caso rumoroso envolvendo o ministro, a delação de Marcelo Odebrecht, o empreiteiro relata em vídeos publicados em setembro do ano passado por Crusoé que pagou caro a um escritório de advocacia indicado por Toffoli para intermediar a relação na época em que ele era advogado-geral da União. A Odebrecht, àquela altura, precisava do apoio da AGU aos seus interesses na construção de uma hidrelétrica e em uma disputa tributária. “A suposta delação de Marcelo Odebrecht narra o mesmo modus operandi afirmado por Sergio Cabral neste anexo”, afirma o delegado da PF, que aponta indícios de crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa na suposta venda de decisões judiciais no TSE.
Foi no curso das tratativas com a PF para fechar esse e os outros 19 capítulos complementares da delação de Cabral que a defesa do ex-governador incluiu no “Caso Criminal 20”, como foi classificado o anexo de Toffoli, um segundo capítulo para tratar de “obstrução das investigações”. Em depoimento, Cabral afirma que Toffoli arquivou doze anexos de sua colaboração, em agosto do ano passado, porque “tinha interesse na sua autopreservação, tendo em vista que seria implicado” na sua delação. Para a PF, pode-se afirmar, em tese, que o ministro “obstruiu 12 investigações criminais na condição de presidente do Supremo Tribunal Federal”, no ano de 2020, “ao determinar o arquivamento” dos inquéritos encaminhados pelo ministro Edson Fachin, pelo fato de ter “mantido tratativas espúrias com o colaborador Sergio Cabral e ser implicado criminalmente em anexo da colaboração premiada na condição de membro de grupo criminoso atuante na venda de decisões judiciais”. Nos inquéritos arquivados por Toffoli, com parecer favorável do procurador-geral da República, Augusto Aras, que é contra a delação de Cabral e tenta anular o acordo feito por ele com a PF no Supremo, apareciam como alvos senadores do MDB, ministros do STJ, como o atual presidente da corte, Humberto Martins, e ministros do TCU, como Bruno Dantas, Raimundo Carreiro e Vital do Rêgo.O clima também ficou tenso na PF porque o delegado Bernardo Guidali encaminhou os pedidos ao Supremo sem comunicar previamente o diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, que trabalhou com dois delatados por Cabral: ele atuou como secretário de segurança no STF na gestão Toffoli e também no STJ, com Humberto Martins. Delegados acreditam que haverá retaliação, o que já virou praxe nos órgãos de investigação quando os inquéritos chegam a aliados do governo, como é o caso de Toffoli e Martins. Toffoli nega ter recebido pagamentos em troca de decisões. Crusoé perguntou se ele pretende processar Sérgio Cabral ou adotar alguma outra providência em relação ao ex-governador, mas não houve resposta.
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