Adriano Machado/CrusoéToffoli jogava futebol na infância com diretor da PF. Amizade dura até hoje

Toffoli delatado

Crusoé teve acesso a tudo o que Sérgio Cabral disse sobre Dias Toffoli em seu acordo de colaboração premiada e aos relatórios da Polícia Federal sobre o caso
14.05.21

Duas semanas antes de deixar a presidência do Supremo Tribunal Federal, em setembro do ano passado, o ministro Dias Toffoli decidiu arquivar sumariamente, em um mesmo dia, doze inquéritos abertos na corte para investigar fatos revelados na delação premiada de Sérgio Cabral, ex-governador do Rio de Janeiro. No rol de investigados havia deputados, senadores e ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União. A pressa e a forma como Toffoli enterrou os casos chamaram a atenção de quem acompanhava os processos de perto. O ministro se valeu da posição de presidente do STF para enviar os inquéritos abertos pelo ministro Edson Fachin para a Procuradoria-Geral da República e depois, com aval da PGR, arquivá-los antes mesmo de distribuí-los para outro magistrado assumir a relatoria, como é a regra. Esse expediente completamente atípico na corte levou a Polícia Federal a incluir um segundo capítulo, por suspeita de “obstrução de investigações”, no rumoroso pedido de abertura de inquérito feito ao Supremo há duas semanas para investigar Toffoli. Houve um segundo capítulo porque, no primeiro, é o próprio ministro Toffoli quem é delatado por Cabral por suposta “venda de decisões judiciais”.

Crusoé teve acesso com exclusividade aos arquivos sigilosos onde estão todos os anexos, depoimentos e relatórios da PF que fundamentam os 20 novos pedidos de abertura de inquérito feitos ao Supremo no dia 30 de abril, pelo delegado Bernardo Guidali, a partir da delação de Sergio Cabral. No topo da lista está o ex-presidente do STF. A informação sobre a abertura do inquérito foi revelada pelo jornal Folha de S.Paulo. Na quarta-feira, 12, Crusoé mostrou que, em seu acordo de colaboração, o ex-governador do Rio afirmou que Toffoli recebeu 3 milhões de reais para alterar seu próprio voto e mais 1 milhão de reais para conceder uma liminar que beneficiou dois prefeitos de municípios do interior do estado que apresentaram recursos ao Tribunal Superior Eleitoral contra a cassação de seus mandatos. Os fatos narrados por Cabral ocorreram entre os anos de 2014 e 2015, quando Toffoli era o presidente do TSE. Segundo o delator, os pagamentos foram feitos por meio do escritório de advocacia de Roberta Rangel, mulher do ministro, e por um ex-sócio dela, o advogado Daniane Furtado. O pedido de investigação do magistrado, um fato inédito na corte, foi encaminhado para Fachin, que em fevereiro do ano passado homologou o acordo de delação fechado por Cabral com a PF.

A PF disse ter encontrado indícios que corroboram a narrativa de Cabral
Em depoimento prestado em setembro do ano passado, Cabral afirma que 3 milhões de reais foram pagos para Toffoli alterar seu próprio voto no TSE e reverter a cassação de mandato do prefeito de Volta Redonda, Antônio Francisco Neto, seu antigo aliado. O ministro já havia votado contra o recurso especial movido pela defesa do prefeito do MDB, em julgamento realizado no dia 7 de abril de 2015. Foi então que Neto procurou o ex-governador pedindo para que ele atuasse em seu favor no julgamento dos embargos de declaração que sua defesa ajuizou no tribunal, como último recurso para tentar reverter a cassação. Naquele julgamento de abril, com voto contrário de Toffoli, o TSE acabou rejeitando, por 4 a 3, o recurso de Neto e mantendo a cassação decidida pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio, por propaganda irregular na campanha de 2012. Cabral diz que depois de conversar com o então governador Luiz Fernando Pezão sobre o caso, acionou um de seus homens de confiança, José Luiz Solheiro, um policial militar da reserva. Solheiro, segundo Cabral, tinha ótima relação com o casal Toffoli.

O ex-policial trabalhou na Secretaria de Segurança do Rio, por mais de dez anos nos governos Cabral e Pezão, Segundo a PF, Solheiro é dono de uma série de empresas de investimentos e administração de bens sediadas no mesmo endereço em Jundiaí, no interior de São Paulo. A maior delas tem como sócio um empresário que detém firmas abertas no Panamá e nas Ilhas Virgens Britânicas, dois conhecidos paraísos fiscais no Caribe. De acordo com Cabral, foi Solheiro quem acionou Roberta Rangel com a oferta de 3 milhões de reais pela mudança de voto de Toffoli. O pagamento, afirma o ex-governador, foi operacionalizado pela estrutura de recursos ilícitos de Pezão, que era coordenada pelo então secretário de Obras do Rio, Hudson Braga. A PF constatou que, de fato, Toffoli alterou o voto dois meses depois, no julgamento dos embargos de declaração, ocorrido em 23 de junho de 2015, virando o placar em favor do prefeito de Volta Redonda (assista ao vídeo mais abaixo). Por 4 a 3, o TSE reverteu a cassação de Antônio Neto. Em seu voto, Toffoli afirmou que era o caso de “reenquadramento” e “revaloração” das provas e que, com a nova análise, concluiu que “não houve abuso” por parte do prefeito na campanha. Chamou atenção dos investigadores o fato de Toffoli ter alterado o voto no julgamento de embargos de declaração, que é uma espécie de recurso usado para esclarecer alguma contradição ou omissão na decisão judicial e que não costuma mudar a convicção dos juízes.

Toffoli foi acusado também de obstruir as investigações decorrentes da delação
Em segundo depoimento, prestado no dia 14 de setembro do ano passado por videoconferência a partir do presídio de Bangu 8, onde está preso há cinco anos, Cabral relata outro episódio no qual acusa Toffoli de ter recebido 1 milhão de reais para favorecer a ex-prefeita de Bom Jesus de Itabapoana Branca Motta, em 2014, com uma liminar no TSE. Branca também teve o mandato cassado pelo Tribunal Regional Eleitoral, por abuso de poder econômico na campanha pela reeleição, e pediu ajuda a Cabral, que a considerava como uma “irmã”. Segundo Cabral, nesse caso, o pagamento foi feito por meio de Daniane Furtado, que era o advogado da então prefeita no TSE e tinha sido sócio do escritório de Roberta Rangel entre os anos de 2007 e 2013. Antes desse período, Furtado já havia assumido alguns processos do PT na Justiça Eleitoral que Toffoli teve de deixar em 2003, quando virou assessor jurídico do então ministro da Casa Civil, José Dirceu, no primeiro governo Lula. Furtado voltaria a trabalhar mais tarde com a mulher de Toffoli, entre 2017 e 2019. Em julho de 2014, o ministro concedeu a liminar em favor de Branca Motta, suspendendo a cassação do mandato até o julgamento do mérito da ação no TSE, o que só ocorreu em agosto de 2016, quando ela perdeu no plenário – nessa época, Toffoli já havia deixado de ser ministro do TSE.

No pedido de abertura de inquérito para aprofundar a investigação sobre Toffoli, a PF afirma que verificou a “existência de indícios mínimos que corroboraram a narrativa do colaborador (Cabral) no sentido da constituição de um grupo criminoso dedicado a venda de decisões judiciais mantido pelo Excelentíssimo Ministro Dias Toffoli”. O delegado Bernardo Guidali destaca em seu relatório duas reportagens publicadas por Crusoé, que, na visão dele, sugerem “o mesmo modus operandi” descrito por Cabral em outros casos suspeitos envolvendo Toffoli – repasses de dinheiro por meio de escritórios de advocacia. A primeira delas é a que revelou, em julho de 2018, a mesada de 100 mil reais que Roberta Rangel costumava repassar ao marido – foram ao menos 4,5 milhões de reais, no total. Em outro caso rumoroso envolvendo o ministro, a delação de Marcelo Odebrecht, o empreiteiro relata em vídeos publicados em setembro do ano passado por Crusoé que pagou caro a um escritório de advocacia indicado por Toffoli para intermediar a relação na época em que ele era advogado-geral da União. A Odebrecht, àquela altura, precisava do apoio da AGU aos seus interesses na construção de uma hidrelétrica e em uma disputa tributária. “A suposta delação de Marcelo Odebrecht narra o mesmo modus operandi afirmado por Sergio Cabral neste anexo”, afirma o delegado da PF, que aponta indícios de crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa na suposta venda de decisões judiciais no TSE.

Foi no curso das tratativas com a PF para fechar esse e os outros 19 capítulos complementares da delação de Cabral que a defesa do ex-governador incluiu no “Caso Criminal 20”, como foi classificado o anexo de Toffoli, um segundo capítulo para tratar de “obstrução das investigações”. Em depoimento, Cabral afirma que Toffoli arquivou doze anexos de sua colaboração, em agosto do ano passado, porque “tinha interesse na sua autopreservação, tendo em vista que seria implicado” na sua delação. Para a PF, pode-se afirmar, em tese, que o ministro “obstruiu 12 investigações criminais na condição de presidente do Supremo Tribunal Federal”, no ano de 2020, “ao determinar o arquivamento” dos inquéritos encaminhados pelo ministro Edson Fachin, pelo fato de ter “mantido tratativas espúrias com o colaborador Sergio Cabral e ser implicado criminalmente em anexo da colaboração premiada na condição de membro de grupo criminoso atuante na venda de decisões judiciais”. Nos inquéritos arquivados por Toffoli, com parecer favorável do procurador-geral da República, Augusto Aras, que é contra a delação de Cabral e tenta anular o acordo feito por ele com a PF no Supremo, apareciam como alvos senadores do MDB, ministros do STJ, como o atual presidente da corte, Humberto Martins, e ministros do TCU, como Bruno Dantas, Raimundo Carreiro e Vital do Rêgo.

A ajuda a Branca Mota, segundo o ex-governador, custou 1 milhão de reais
Agora, nos novos anexos, aos quais Crusoé teve acesso, também são delatados o ministro Aroldo Cedraz, do TCU, o deputado Aécio Neves, do PSDB de Minas Gerais, e a senadora Rose de Freitas, do MDB do Espírito Santo, cujo irmão e um assessor foram presos nesta semana acusados de corrupção no porto capixaba. Um dos casos envolve pagamentos de 30 milhões de reais a uma empresa do primogênito do ex-presidente Lula por meio de contrato do governo do Rio com a operadora Oi. Aparecem ainda o prefeito do Rio, Eduardo Paes, do PSD, e o ex-governador Luiz Fernando Pezão. Em um dos anexos, Cabral implica Cedraz, Paes e Pezão em um suposto esquema que envolveu a entrega da operação dos teleféricos do Morro do Alemão e do Morro da Providência a uma empresa do advogado Tiago Cedraz, filho do ministro do TCU, em troca de proteção nos processos referentes à prefeitura e ao governo do Rio no Tribunal de Contas da União. Já Aécio Neves foi acusado por Cabral de receber pagamentos ilícitos de empreiteiras nas obras da Linha 4 do Metrô carioca, da Cidade Administrativa em Belo Horizonte, executada na gestão dele como governador de Minas Gerais, e fraudes nos programas Uai e Poupatempo, de atendimento ao cidadão, em Minas e no Rio, respectivamente. Há menções, ainda, a um suposto esquema de lavagem de dinheiro mantido pelo banco BMG. Os casos que não envolvem pessoas com foro no STF serão distribuídos para os tribunais competentes.

Cabral diz que acionou um ex-auxiliar para socorrer o prefeito junto ao casal Toffoli
Após receber o pedido de abertura de inquérito sobre Toffoli, o mais delicado de todos, Fachin encaminhou o material para a Procuradoria-Geral da República, que terá de emitir um parecer indicando o que fazer – ao que tudo indica, Aras deverá sugerir o arquivamento dos anexos. No passado, a PGR se recusou a assinar o acordo de delação com Cabral, que é alvo de 33 ações penais e já foi condenado a mais de 300 anos de prisão na Lava Jato do Rio. Depois que o pedido da PF para investigar Toffoli veio à tona, na última terça-feira, 11, a reação no Supremo foi de incredulidade. Fachin foi pressionado a colocar em votação um recurso que estava havia mais de um ano em seu gabinete, no qual a PGR contesta o acordo de delação de Cabral. O julgamento está pautado para o próximo dia 21 no plenário virtual do STF, onde os ministros apresentam seus votos eletronicamente, sem necessidade de debate – eles podem, em último caso, até anular o acordo de Cabral.

O clima também ficou tenso na PF porque o delegado Bernardo Guidali encaminhou os pedidos ao Supremo sem comunicar previamente o diretor-geral da PF, Paulo Maiurino, que trabalhou com dois delatados por Cabral: ele atuou como secretário de segurança no STF na gestão Toffoli e também no STJ, com Humberto Martins. Delegados acreditam que haverá retaliação, o que já virou praxe nos órgãos de investigação quando os inquéritos chegam a aliados do governo, como é o caso de Toffoli e Martins. Toffoli nega ter recebido pagamentos em troca de decisões. Crusoé perguntou se ele pretende processar Sérgio Cabral ou adotar alguma outra providência em relação ao ex-governador, mas não houve resposta.

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