MarioSabino

O ministro e a baratinha

14.05.21

Depois de uma noite de sonos intranquilos, por causa da vacina da AstraZeneca, acordei com uma barata no quarto. Barata mixuruca, não daquelas cascudas que impõem algum respeito. Ainda assim, nojenta. A baratinha é velha conhecida. Eu pensava que duas borrifadas de inseticida tinham sido suficientes para ela não aparecer mais na minha frente, mas o ministro do Superior Tribunal de Justiça Luis Felipe Salomão, personagem que de vez em quando frequenta o noticiário da Crusoé e de O Antagonista, resolveu ajudá-la — e a barata, que deitada de costas agitava as perninhas intoxicada com as borrifadas de inseticida, ganhou vida nova. Agora deve se meter de acordo com outras baratinhas para continuar a tentar me amolar por ordem do baratão que foi solto pelo Supremo Tribunal Federal. Há muitos insetos na pauta dos tribunais superiores brasileiros.

A baratinha em questão é um blogueiro sujo que processei quando ainda estava na Veja. Identificado como responsável pela cobertura que a revista fez do mensalão, o que é uma honra para mim tanto quanto uma injustiça para com os meus ex-colegas, passei a ser alvo dos insetos arregimentados por Franklin Martins, aquele lá. Entre todas as baratas, a que reapareceu no meu quarto exagerou na gosminha que soltava. Processei, ganhei em duas instâncias, mas o ministro Luis Felipe Salomão reverteu a decisão, com a anuência dos seus pares de turma, todos eles igualmente frequentadores das páginas da Crusoé e de O Antagonista.

Eu já nem lembrava desse processo (para se ter ideia, não sabia dizer quem era o advogado designado pela Editora Abril para levar o meu caso adiante), quando fui informado via Twitter de que o STJ havia beneficiado a baratinha. Eu também desconhecia que o inseto era defendido pelo advogado Cristiano Zanin, que parece ter um apreço especial pela subordem Blattaria. Mas o processo ainda estava em julgamento e eu estava ganhando quando a outra parte levou no tapetão. Compreendo a jurisprudência: a Crusoé, principalmente, fiscaliza os tribunais superiores e os tribunais precisam ter mais rigor com o seu publisher. Noblesse oblige.

O que me causou espanto, contudo, foi a manobra do ministro Luis Felipe Salomão para me colocar como um jornalista que apela para a censura. No seu voto, ele disse: “O que há de diferente no caso em julgamento — quase inusitado — é que figura como autor um experiente jornalista reclamando indenização de outro jornalista e do sítio eletrônico onde reproduzidas as matérias que teriam sido ofensivas a sua honra. Talvez por isso, ambos experimentaram a estranha sensação de um cidadão que é ofendido, com sua carreira e profissão destroçados, e depois postula a reparação do dano moral no Judiciário”. Luis Felipe Salomão também afirmou que o caso mostra “um espelho de dupla face, que convida os profissionais sérios de imprensa a pensarem o peso e responsabilidade de suas atuações”.

O voto inteiro é de um primor salomônico, mas não vou aborrecer o leitor me estendendo sobre a extraordinária sapiência. Só acho pitoresco que o ministro pense que “jornalistas experientes” não tenham direito a defender a própria honra. Dado importante: como profissional de imprensa, sinto-me no direito de criticar e até ridicularizar quem quer que seja — e, do mesmo modo, não vejo problema que façam o mesmo com relação a mim. Vale até xingamento. Mas há um diferença abismal entre criticar e ridicularizar com fatos e criticar e ridicularizar com mentiras. No afã de mostrar serviço ao seu baratão, a baratinha lançou uma série de gosminhas falsas na minha direção, como a que eu manipulava o noticiário da Veja. Para Luis Felipe Salomão, contudo, o inseto não teve animus injuriandi — o que é uma curiosidade jurídica, pois o intuito era (e é) claramente me difamar, como constatado por juízes espantados com o voto do ministro. Ele acha, fato quase inusitado, que como sou personagem de “alta relevância social”, devo tolerar esse tipo de “crítica”.

A decisão de Luis Felipe Salomão, chancelada por seus pares, ensejou que sites jurídicos, de gente muito reta e vertical, tentassem me transformar em vilão que quis ferir a liberdade de expressão. Logo eu, que fui colocado duas vezes na frente de delegados da Polícia Federal por ter publicado reportagens verídicas que afetavam poderosos. Logo eu, que tive a Crusoé censurada. Ao mesmo tempo, o advogado Cristiano Zanin foi enaltecido por esses sites como arauto das liberdades previstas na Constituição. Logo ele, que tentou me levar a uma delegacia da Polícia Civil de São Paulo, como advogado do baratão, acusando-me de ser chefe de uma organização criminosa, O Antagonista. É risível.

Luis Felipe Salomão citou O Antagonista, para dar a entender que eu estava provando do meu próprio veneno. Posso estar enganado, mas tendo a crer que, ao referir-se ao site, o ministro incorreu em desvio de finalidade, já que levou para dentro do processo elementos de fora dos autos. Os fatos estão relacionados apenas à minha atuação na Veja. O Direito brasileiro é peculiar. Talvez seja apenas impressão minha e o ministro não quis me mandar recado, com a história de “espelho de duas faces” etc. Não importa, seria inútil: a melhor forma de defender a liberdade de expressão é fazendo jornalismo de verdade, o que nada tem a ver com a gosminha de baratas. Esta edição da Crusoé ilustra bem o meu ponto.

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