Fachada da Missão Caiuá: entidade admite viver um "caos financeiro"

Padrinhos superpoderosos

A história de sucesso da ONG que era vista como petista e, sob Bolsonaro, já faturou mais de meio bilhão de reais por ser terrivelmente evangélica. Hoje, em Brasília, ela tem dois ministros como aliados
07.05.21

Logo que Jair Bolsonaro chegou ao Palácio do Planalto, o plano era eliminar sistematicamente o que havia de herança petista na máquina federal. Na primeira reunião ministerial, em 3 de janeiro de 2019, o próprio presidente ordenou aos ministros que promovessem a “despetização” do governo. Em um sinal de que havia entendido a ordem, Onyx Lorenzoni, então chefe da Casa Civil, correu para anunciar que, em uma só canetada, exonerara 320 funcionários comissionados. Além da “despetização”, disse o ministro na ocasião, o presidente ordenara que cada área fizesse uma detalhada revisão das liberações de recursos feitas nos governos do PT.

Passados 855 dias de governo, uma parte significativa da herança petista foi varrida do mapa, mas há remanescentes. E ao menos um deles chama bastante atenção. Entre 1º de janeiro de 2019 e 5 de maio de 2021, uma entidade teoricamente sem fins lucrativos apontada como queridinha dos governos Lula e Dilma Rousseff recebeu mais de meio bilhão de reais (precisamente 525 milhões) em recursos do Ministério da Saúde. O nome da ONG, fundada e controlada pela igreja Presbiteriana do Brasil, é comprido: “Missão Evangélica Caiuá: a serviço do índio para Glória de Deus”.

A entidade ganha dinheiro do governo para prestar atendimento de saúde em aldeias indígenas. Sua sede fica em Dourados, cidade de médio porte do interior do Mato Grosso do Sul, mas graças às generosas verbas recebidas nos últimos anos a atuação se expandiu para vários outros estados, como Amazonas e Roraima. Por meio dos aportes incrementados pelo governo Bolsonaro, a ONG alcançou um tamanho que impressiona. Em julho de 2020, gastou 14,5 milhões de reais só com o pagamento de salários de 4.602 funcionários.

No atual governo, a ONG não só manteve os convênios das gestões petistas como ganhou poder. Dois ministros do atual governo, pastores da Igreja Presbiteriana, são considerados como pontos de apoio da entidade em Brasília: Milton Ribeiro, da Educação, e André Mendonça, hoje na Advocacia-Geral da União. A relação é estreita. Em 9 de dezembro do ano passado, por exemplo, a cúpula da Missão Caiuá foi recebida por Milton Ribeiro. Entre os presentes à audiência, estava o reverendo Geraldo Silveira Filho, que tem longa relação de amizade com o ministro.

Isac Nóbrega/Presidência da RepúblicaIsac Nóbrega/Presidência da RepúblicaMilton Ribeiro, ministro da Educação: reunião com presidente da ONG
De olho já há algum tempo no potencial eleitoral das igrejas, Bolsonaro percebeu o poder que tinha ao alcance de uma canetada e passou a contar com a ONG como aliada. Logo no início do ano passado, o Ministério Público Federal recebeu denúncias de que a Presbiteriana estava usando sua estrutura para promover a Aliança Pelo Brasil, o partido idealizado pelo presidente. Em 26 de janeiro de 2020, fiéis de um templo da igreja em Londrina, no Paraná, foram “desafiados” pelo pastor a assinar a ficha de apoio à criação do Aliança. No estacionamento, havia um ônibus com a foto do presidente e a logomarca do partido.

Crusoé teve acesso a investigações, relatórios de movimentação financeira e testemunhos que apontam para uma ONG com estrutura inchada de funcionários indicados por políticos, que drena recursos públicos sem critérios técnicos e, na ponta, entrega serviços de péssima qualidade.

A Missão Caiuá interessa os governantes de plantão por um motivo claro: além de ser braço de uma importante igreja evangélica, ela tem capilaridade no país e emprega cabos eleitorais de muitos políticos locais. Entre 7 e 11 de novembro de 2019, auditores da CGU realizaram uma inspeção surpresa em uma área indígena atendida pela ONG em Santa Catarina e encontraram nada menos que 68 casos de contratação de parentes de pessoas que já trabalhavam na entidade ou estavam vinculadas à atividade política.

A auditoria concluiu que, no momento da seleção dos candidatos, a Caiuá estava levando em conta “critérios subjetivos” para empregar aliados políticos. Aquela era apenas uma fração do problema. Ainda em 2013, no governo Dilma, uma associação formalizou denúncia no Ministério Público em que dizia que eram políticos, incluindo um deputado estadual do PSL, que definiam as contratações de terceirizados em Roraima. Em troca, esses mesmos políticos atuavam para preservar os interesses da ONG junto ao governo, incluindo a manutenção dos convênios com o Ministério da Saúde.

DivulgaçãoDivulgaçãoO próprio governo, por meio da CGU, já identificou irregularidades no trabalho da entidade
Em outra auditoria, finalizada em 2020, a CGU concluiu que a opção do governo de entregar a gestão da área de saúde indígena para a entidade não estava surtindo os efeitos desejados – nada, porém, que tivesse sido capaz de interromper os repasses milionários. Um problema grave apontado é que empresas potencialmente fantasmas foram contratadas pela entidade. Além de pagamentos feitos por outras ONGs, essas empresas receberam nada menos que 327 milhões de reais.

Desde dezembro de 2020, a Missão Caiuá conta com um parecer da AGU e uma liminar da Justiça para continuar recebendo recursos do Ministério da Saúde mesmo após ter o CNPJ bloqueado. O Ministério Público se manifestou contra os repasses, afirmando serem superficiais as alegações da ONG de que a interrupção dos pagamentos poderia acarretar em “risco de morte” para as populações indígenas. As liberações milionárias não têm, na prática, se refletido em bons serviços. De forma geral, as apurações oficiais sobre a atuação da entidade apontam para uma péssima administração dos recursos, com postos de atendimento sucateados e um alto índice de problemas de saúde nas áreas atendidas.

Em nota enviada a Crusoé, o Ministério da Saúde disse que a Missão Caiuá presta serviços à saúde indígena por meio de convênios firmados por meio de processos transparentes. A AGU afirmou que o parecer que garante os repasses à ONG não tem qualquer relação com a gestão de André Mendonça. O presidente da entidade, reverendo Geraldo Silveira Filho, não respondeu às tentativas de contato. O advogado e coordenador de convênios da ONG, Cleverson Daniel Dutra, afirmou que a Caiuá tem apurado internamente denúncias de irregularidades e, atualmente, passa por um “caos financeiro”. “Responsáveis pela execução dos convênios foram demitidos, pois, supostamente, estariam praticando atos ilegais e lesivos à instituição”, declarou.

Para além dos polpudos convênios que já tinha em vigor, na gestão de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde a Missão Caiuá foi habilitada para receber, também, recursos destinados ao combate à Covid-19. Em Brasília, as coisas mudam, muitas vezes, para permanecer como antes.

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