SergioMoro

Feliz aniversário

07.05.21

Nesta semana, a revista Crusoé completa três anos de existência.

Assino a revista desde a primeira edição e ela tem se destacado pela independência e pela coragem de suas matérias. O jornalista independente precisa ser, antes de tudo, um forte, para parafrasear um famoso repórter que desbravou os sertões para mostrar, em textos que viraram um clássico da literatura, que a realidade era bem diferente do que a versão oficial tentava imprimir.

Ano passado, após deixar o governo, recebi o gentil convite para escrever uma coluna periódica. Aceitei sem a necessidade de muita reflexão, considerando o apreço pela qualidade da revista. Evidentemente, não sou um jornalista, mas apenas um cidadão que escreve quinzenalmente uma opinião em um veículo respeitado.

Ainda nesta semana, tivemos o Dia da Liberdade de Imprensa.

Precisamos cultivar mais a liberdade de imprensa e a imprensa deve cultivar mais essa liberdade. Não deve haver qualquer censura à liberdade de imprensa por parte da lei ou das autoridades governamentais. A esse respeito, vale a pena repetir a citação de Thomas Jefferson sobre a importância da imprensa: “Se fosse deixado a mim decidir se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não hesitaria nem por um momento a preferir a última hipótese”.

O ano era 1787, e os Estados Unidos, que haviam obtido apenas recentemente a independência, sofriam tumultos com a denominada “Shay´s Rebellion”, na qual parte da população de Massachusetts rebelou-se, em armas, contra o pagamento de impostos. Durante o tumulto, Jefferson, então embaixador em Paris, escreveu uma carta para um congressista na qual defendeu a liberdade de imprensa nos termos acima. Nela, há outros trechos bem relevantes. Apesar da rebelião, Jefferson reafirmou a sua confiança na opinião pública, ressaltou a importância de um povo bem-informado e destacou a relevância da imprensa para tanto: “Estou persuadido de que o bom senso do povo será sempre considerado o melhor exército. Ele pode ser desviado por um momento, mas brevemente corrigirá a si mesmo. O povo é o único censor do governo: e mesmo os seus erros tendem a mantê-lo com os verdadeiros princípios de suas instituições. Punir esses erros tão severamente seria suprimir a única salvaguarda da liberdade pública. O caminho para prevenir essas interposições irregulares do povo é dar a ele informação completa dos assuntos públicos através dos canais dos jornais e fazer com que esses papéis penetrem toda a massa do povo. Sendo a base de nosso governo a opinião do povo, o primeiro objetivo deve ser mantê-la correta; (…)”. Em outras palavras, liberdade de imprensa, povo bem-informado e bom governo caminham juntos.

Com base nessa tradição política, as cortes norte-americanas conferem à liberdade de imprensa e também à liberdade de expressão uma proteção jurídica quase absoluta. Vou citar dois casos memoráveis. Em New York Times v. Sullivan, de 1964, a Suprema Corte protegeu a imprensa contra ações de indenização por difamação, exigindo, para a responsabilização, a prova de que o veículo teria agido com “malícia atual” ao publicar uma notícia falsa. Em outras palavras, a publicação de boa-fé de uma matéria que depois se verificou inidônea não gera responsabilidade.  A justificativa usada foi a de proteger o debate público que deveria ser sem inibições, robusto, amplo, e poderia “incluir ataques veementes, cáusticos e, algumas vezes, desagradáveis ao governo e às autoridades governamentais”.  No caso denominado “Os papéis do Pentágono” (New York Times v. US, de 1971), a Suprema Corte impediu a censura prévia de publicações de relatórios confidenciais sobre a Guerra do Vietnã, entendendo que o governo não teria demonstrado que o ato geraria riscos à segurança dos Estados Unidos ou de suas tropas. Segundo a decisão, “qualquer sistema de restrição prévia à liberdade de expressão vem à corte carregada de pesada presunção contra sua validade constitucional”.

No Brasil, nossa tradição de proteção à imprensa é menos robusta. Na República Velha, onde vigorou um regime democrático formal, embora censitário, foi corriqueira a decretação de estado de sítio, no qual as liberdades eram restringidas. Prisões de jornalistas e empastelamento de redações eram práticas comuns. Depois, não há o que falar sobre a liberdade de imprensa durante os períodos de intimidação e censura do Estado Novo ou do governo militar. O socorro pelo Judiciário contra o autoritarismo nem sempre foi dos melhores, como ilustram a denegação, em 1922, do habeas corpus contra a prisão de José Eduardo de Macedo Soares, diretor do jornal O Imparcial, ou a denegação, em 1978, de mandado de segurança contra censura prévia do semanário O São Paulo, todas essas decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal. É certo que, no período posterior à reabertura democrática, a proteção conferida pelo Judiciário à liberdade de imprensa melhorou, principalmente em relação à proibição da censura, mas também houve escorregões graves, como, por exemplo, a imposta – temporariamente – contra matéria publicada em 2019 pela própria revista Crusoé.

Mas as ameaças à liberdade de imprensa nem sempre decorrem de ações tão explícitas da parte do poder público. Dinheiro é poder e uma forma de coibir a liberdade de imprensa consiste em sufocar financeiramente os veículos independentes, ameaçando, por exemplo, os anunciantes. Outro recurso perverso consiste em utilizar as verbas estatais para comprar não só anúncios, mas também a independência jornalística.  A manipulação do ambiente selvagem das redes sociais tem sido igualmente utilizada para intimidar veículos de imprensa e jornalistas independentes, prática que acontece no mundo inteiro e em diferentes níveis.

Precisávamos, no Brasil, de uma melhor proteção legal à imprensa independente. Algumas sugestões: regras mais claras proibindo a censura prévia; previsão das hipóteses claras nas quais a publicação de notícias errôneas possa ensejar responsabilidade criminal ou cível, talvez exigindo para tanto o já aludido requisito da “malícia atual”, ou seja, responsabilização da imprensa se houver publicação de notícia falsa com consciência da falsidade; regulação da proteção do sigilo da fonte; e proteção aos meios de financiamento da imprensa, com proibição de retaliação via pressões indevidas diretas ou indiretas. A proteção contra o ataque por meio das redes sociais é um pouco mais complicada, pois não pode incorrer em censura prévia das redes. Certamente não cabe questionamento sobre a legitimidade da proteção contra ameaças e incitação à violência mesmo se perpetradas pela rede social. Para os demais casos, falta ainda a identificação de uma proteção mais abrangente. As ações contra a manipulação da rede têm sido mais direcionadas para a eliminação de mecanismos artificiais, como robôs.

Agora, não basta a liberdade formal, a imprensa tem que ter a coragem e a responsabilidade para exercer a liberdade que a lei lhe concedeu. Definir políticas e protocolos para manter a independência é fundamental. Denunciar e tornar públicas todas as tentativas de intimidação parece ser igualmente boa política. Manter distância salutar das facilidades propiciadas pelo poder também é recomendável. Nessa perspectiva, a Crusoé tem sido corajosa, não tendo poupado, o que não é comum, nenhuma esfera de poder com matérias críticas bem apuradas e fundamentadas. Há motivos a comemorar, especialmente quando isso ocorre em um ambiente político polarizado e que favorece excessos.

P.S.: Escrevia estas linhas quando tive a notícia da saída de Diogo Mainardi do Programa Manhattan Connection. Perdem a TV Cultura e os espectadores.

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