Em busca dos cúmplices
Aos poucos, a CPI da Covid começa a montar o quebra-cabeça capaz de caracterizar, de maneira inequívoca, a responsabilidade direta de Jair Bolsonaro na catastrófica gestão da pandemia no Brasil. Embora suas digitais estejam por toda parte, como já demonstrou Crusoé, a comissão de inquérito quer reunir provas irrefutáveis das ações e omissões do presidente para embasar um relatório final que seja jurídica e politicamente incontestável.
A primeira temporada de depoimentos forneceu elementos e até uma prova material de que, mesmo diante dos alertas de seus então ministros da área, Bolsonaro não só agiu deliberadamente no sentido contrário às orientações científicas, como criou uma espécie de “gabinete paralelo da Saúde”, destinado a chancelar suas teses na contramão do isolamento social, do uso de máscaras, da administração urgente de vacinas e em linha com a imunidade de rebanho e a prescrição de medicamentos ineficazes no combate ao coronavírus, como a cloroquina.
A montagem de um “Ministério da Saúde do B”, composto por pessoas dispostas a falar para o presidente exatamente o que ele gostaria de ouvir, foi a maneira encontrada por Bolsonaro para driblar eventuais decisões de seus ministros da Saúde que não estivessem em total consonância com os seus interesses e propósitos políticos – parte desse problema, como já é sabido, foi sanado com a ascensão de Eduardo Pazuello ao comando da pasta na segunda quinzena de maio de 2020, a partir de quando o combate aos efeitos da pandemia no país degringolou de vez.
A existência da estrutura paralela na Saúde ficou clara durante o depoimento de Luiz Henrique Mandetta. À CPI, o ex-ministro da Saúde revelou como Bolsonaro era influenciado por figuras que faziam parte de seu “assessoramento paralelo”, como os filhos Flávio, Carlos e Eduardo Bolsonaro, o então chanceler Ernesto Araújo, o assessor internacional da Presidência Filipe Martins e o ex-ministro da Cidadania Osmar Terra, conhecido por suas previsões furadas sobre a tragédia. “Ele tinha outras pessoas que diziam: ‘Olha, isso que o ministro da Saúde está falando está errado, vá por esse outro caminho’”, afirmou Mandetta.
Carlos Bolsonaro protagonizou outro episódio ilustrativo de sua influência nas decisões do presidente. Nesse dia – o ex-ministro não soube precisar a data – ele estava acompanhado dos irmãos políticos, Flávio e Eduardo, o 01 e o 03. “Eu fui até o Palácio do Planalto e eles estavam todos lá, os três filhos do presidente e mais assessores de comunicação. Eu disse a eles: ‘Olha eu preciso conversar com o embaixador da China, preciso que ele nos ajude’”. Mandetta então pediu autorização para levar o chinês Yang Wanming ao Planalto. “Não, aqui não”, disseram os filhos de Bolsonaro, conforme o depoimento. As tratativas com o embaixador acabaram sendo feitas por telefone. Entre as consequências do distanciamento diplomático de Brasil e China, para o qual também contribuíram o então chanceler Ernesto Araújo e Filipe Martins, o conselheiro internacional de Bolsonaro, foi o atraso na entrega de vacinas.
Já Osmar Terra, de acordo com Mandetta, era quem Bolsonaro ouvia quando queria minimizar as previsões sobre mortes pelo coronavírus – na reta final de sua gestão, ele levou a Bolsonaro uma estimativa de 180 mil óbitos pela Covid no Brasil até dezembro de 2020.
Enquanto se aconselhava com pessoas que falavam a linguagem que ele queria, Bolsonaro desconsiderava as advertências do alto comando da Saúde. À CPI, Mandetta sacou uma carta que compromete o presidente da República. A correspondência enviada em 28 de março de 2020 fazia importantes alertas sobre o avanço da pandemia no Brasil. O documento, que não pôde ser lido sob os holofotes da comissão por decisão do relator Renan Calheiros, mas foi revelado na sequência pelo Antagonista, constitui a prova material de que Bolsonaro fez ouvidos moucos às orientações de seu então ministro da Saúde, preferindo ouvir, de acordo com sua própria conveniência, outras vozes.
O último parágrafo da carta é capaz de desmontar qualquer tese sobre a inimputabilidade presidencial: “Recomendamos, expressamente, que a Presidência da República reveja o posicionamento adotado, acompanhando as recomendações do Ministério da Saúde, uma vez que a adoção de medidas em sentido contrário poderá gerar colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população”.
“Estes primeiros depoimentos deixam clara a existência de um ministério paralelo da Saúde. Um poder paraestatal, das sombras, desconhecido, que não apenas aconselha, assessora, mas produz documentos, encaminha soluções, como produzir mais cloroquina, e confronta as orientações de médicos”, disse Renan Calheiros após as oitivas. Diante dessa constatação, o relator da CPI apresentou um requerimento para obter informações sobre todas as reuniões ministeriais que tiveram como foco a pandemia. No pedido, o emedebista também solicita a lista de todas as pessoas presentes nos encontros.
Sentindo-se acuado pelos relatos na CPI, e vendo Lula em Brasília tentando avançar sobre integrantes de sua base política, Bolsonaro voltou a praticar seu esporte predileto: escalar a retórica da ameaça e do extremismo. Na quarta-feira, 5, disse que estava pronto para garantir por decreto “o direito de ir e vir das pessoas”, ameaçado, segundo ele, por medidas de isolamento social determinadas por governadores. Afirmou ainda que “(o decreto) não será contestado por nenhum tribunal, porque ele será cumprido”, em mais uma de uma série de indiretas lançadas contra o Supremo Tribunal Federal. O ápice do destempero foi quando ele acusou a China, um crucial parceiro comercial brasileiro, além de produtor e fornecedor de insumos e novos lotes de vacinas, de produzir uma “guerra química e bacteriológica”. Horas depois, mantendo o hábito de desdizer na cara dura o que falou anteriormente diante das câmeras, Bolsonaro recuou, afirmando que “não mencionou a China”.
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