MarioSabino

Os hormônios de 1968

30.04.21

Um quarto de século atrás, conversei com um sujeito que havia pertencido à Vanguarda Popular Revolucionária, a VPR, um dos grupos que lutavam contra a ditadura militar no Brasil, para tentar instalar uma ditadura de esquerda no país, sempre com aquelas melhores e infernais intenções. Foi a VPR que jogou um carro-bomba na madrugada de 26 de junho de 1968 contra o Quartel General do II Exército, no Ibirapuera, aqui em São Paulo. O atentado terrorista matou o soldado Mário Kozel Filho, um estudante de 18 anos que prestava serviço militar obrigatório, e feriu outras cinco pessoas. Dilma Rousseff ainda não fazia parte do grupo, ao contrário do que diz a fake news que circula pela internet. O sujeito viria a ser preso e torturado e, na época dessa nossa conversa, ainda pertencia aos quadros do PT, partido com o qual viria a romper anos antes de Lula chegar ao poder. Ele percebeu muito antes dos escândalos petistas serem revelados no que consistia a organização.

Estávamos só ele e eu, salvo engano, num restaurante. Papo vai, papo vem, perguntei:

— Me fale sobre o atentado contra o QG do II Exército, em 68. Aquilo foi uma insanidade, concorda?

— Foi uma besteira. A gente havia começado a assaltar bancos para financiar as nossas ações…

— As que vocês chamavam de “confisco”, sei.

— Isso. Aí, o general Manuel Lisboa, que comandava o II Exército, foi para a imprensa dizer que éramos covardes. Que se tivéssemos mesmo culhões, atacaríamos diretamente o Exército. Foi então que a VPR decidiu jogar o carro-bomba contra o Exército. O carro cheio de dinamite bateu num poste. Se não tivesse batido no poste, teria entrado no QG e matado mais gente, além do Kozel.

— Você não se arrepende?

— Os ânimos estavam exaltados. O coitado do soldado… Ninguém imaginava que colocariam um conscrito para vigiar o quartel.

Mário Kozel Filho foi morto, portanto, por causa de excesso de testosterona. Um grupo de machos ficou ofendido por ser chamado de covarde por outro grupo de machos e resolveu provar que ele era composto, sim, por gente muito macha. A estupidez ideológica é também, ou principalmente, estupidez hormonal.

Lembrei-me dessa história porque um fato importante, relativo ao período iniciado em 1968, está em curso neste momento: o governo francês mandou prender e deve extraditar para a Itália dez antigos integrantes de organizações terroristas de extrema esquerda, alguns dos quais das tristemente famosas Brigadas Vermelhas, que escaparam para a França na década de 1980. Dois deles se encontravam refugiados da polícia até a publicação deste artigo. Todos se beneficiaram da “doutrina Mitterrand”, de 1985, uma excrescência saída da cachola do então presidente francês François Mitterrand, ícone do Partido Socialista, segundo a qual a França poderia abrigar ativistas da esquerda italiana que tivessem renunciado ao terrorismo e sem crime de sangue na ficha corrida. Foi uma bofetada na cara da Justiça da Itália, alvo de campanha maciça da esquerda francesa, que a acusava de cometer arbitrariedades. Na verdade, o que a Justiça italiana fez foi usar de delações premiadas (pois é), prisões preventivas alongadas (pois é) e processos à revelia, para deter a escalada terrorista que já durava mais de uma década, inclusive com o assassinato do ex-primeiro-ministro da Itália Aldo Moro, sequestrado e executado pelas Brigadas Vermelhas em 1978, após passar pela farsa de um “tribunal popular” conduzido pelos terroristas. A festinha estudantil de maio de 1968 na França traduziu-se em pesadelo criminal na Itália. Nos “anos de chumbo” italianos, durante os quais a extrema direita também aproveitou a deixa para trucidar inocentes, como no atentado na estação ferroviária de Bolonha em 1980, não havia champanhe ou caviar. Havia cadáveres excelentes.

Depois de viver longa e doce vida na França, graças à “doutrina Mitterrand” que igualmente permitiu a Cesare Battisti refugiar-se em Paris, esses celerados, hoje septuagenários, vão pagar por seus crimes perpetrados entre 1972 e 1982, se justiça tardia é mesmo justiça. Na prática, a estrovenga do presidente socialista serviu de valhacouto para assassinos que, impunes, permaneceram assombrando parentes e amigos das suas vítimas, para não falar da bofetada na Justiça italiana. Essa situação absurda, atenuada aqui e ali, como em 2004, quando Paris ordenou a extradição de Cesare Battisti, voltou à baila com força no início deste ano.

Há cerca de um mês, o presidente francês Emmanuel Macron recebeu um telefonema do primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, e a conversa acelerou as negociações para a prisão e extradição dos ex-terroristas já condenados na Itália por participação direta ou indireta em crimes de morte. Por causa da “doutrina Mitterrand”, uma formalidade embaraçosa difícil de ser legalmente cancelada, a extradição ainda terá de passar pelo crivo da Justiça francesa. No total são 200 os criminosos dos quais a Itália reivindica a extradição, mas a ferida nas relações entre Paris e Roma já começa a cicatrizar, porque esses dez que foram presos são os barra-pesada. “O presidente desejava resolver esse assunto, como a Itália solicitava havia anos. A França, também atingida pelo terrorismo, compreende a absoluta necessidade de fazer justiça às vítimas. Faz parte também da necessidade imperiosa de construir uma Europa da justiça, na qual a confiança mútua deve ser central”, disse o governo de Emmanuel Macron, em comunicado. Desprovida de tentáculos no Palácio do Eliseu, a extrema-esquerda francesa estrebucha em vão.

Sem “doutrina” nenhuma, o Brasil petista abriu as portas para Cesare Battisti. Fugido da França com a ajuda da escritora de romances policiais Fred Vargas, ele aportou no Brasil e seis anos mais tarde acabaria ganhando a proteção oficial de Lula, num dos episódios mais vergonhosos da biografia do chefão petista. Quando entrou na mira do então presidente Michel Temer, o assassino escapou para a Bolívia, foi preso e extraditado para a Itália, onde cumpre pena de prisão perpétua. Na cadeia, confessou que havia mentido sobre a sua inocência — mentira embrulhada aos incautos, e eles foram muitos, com a cumplicidade das esquerdas francesa e brasileira. Battisti reconheceu os seus crimes, mas Lula continua a mentir. Ao pedir desculpas ao “povo italiano”, o chefão petista disse no início de abril, em entrevista à TV italiana, que não sabia que o assassino era assassino. Tediosamente, Lula nunca sabe de nada. E teve as condenações anuladas na Lava Jato sob os mesmos argumentos usados pela esquerda francesa para acusar a Justiça italiana. É método.

Com a extradição dos ex-terroristas da França para a Itália,1968 é um ano que chega ao fim na Europa. Esperemos que essa tempestade hormonal termine logo no Brasil. Terceira via neles.

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