Adriano Machado/CrusoéOs esforços de Bolsonaro pelo remédio ineficaz e potencialmente mortal podem ajudar a matá-lo politicamente

A cloroquina envenena Bolsonaro

O remédio que o presidente propagandeou falsamente como a solução para a pandemia tende a virar seu maior estorvo na CPI da Covid. Documentos obtidos por Crusoé mostram que, enquanto o mundo se movia para comprar vacinas, o governo brasileiro estava preocupado em distribuir o medicamento pelo país
30.04.21

A obsessão pela cloroquina, medicamento elevado à categoria de panaceia da Covid por Jair Bolsonaro e seus aliados, transformou-se em um veneno com potencial para intoxicar o governo na CPI e complicar o já debilitado quadro político do presidente. A comissão de inquérito instalada nesta semana no Senado, se realmente tiver interesse em investigar a questão a fundo, já tem à disposição um farto material que mostra as digitais do governo na mobilização de ministérios e até do Exército para abastecer e ampliar a prescrição indiscriminada no país de um remédio ineficaz e potencialmente mortal, enquanto o mundo se adiantava na corrida pela compra de vacinas. São mais de 600 páginas de documentos oficiais, aos quais Crusoé teve acesso, incluindo pareceres, atas de reunião e trocas de e-mails internos que serviram de base para viabilizar a fabricação e a distribuição do produto, a partir de razões eminentemente políticas.

Na próxima semana, a CPI promete se debruçar justamente sobre o chamado “Kit Covid” – que, além de outras substâncias sem respaldo científico para o tratamento do coronavírus, como a ivermectina, engloba a cloroquina. O debate será impulsionado pela presença do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que foi convocado para prestar depoimento aos senadores na terça-feira, 4. O ex-deputado do DEM foi demitido em abril do ano passado exatamente por sua recusa em referendar um protocolo de prescrição da cloroquina. Um mês após sua saída, o general Eduardo Pazuello, substituto de Nelson Teich, sucessor de Mandetta que ficou apenas 29 dias no cargo, avalizou a publicação de um protocolo que estimulava a prescrição do medicamento até em casos leves da doença.

Entre os documentos obtidos por Crusoé e já disponíveis para a CPI está a íntegra do processo administrativo que resultou no polêmico protocolo. O texto datado de 20 de maio de 2020 ganhou o nome de “Orientações para manuseio medicamentoso precoce de pacientes com diagnóstico da Covid-19”. A norma cita “a larga experiência do uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento de outras doenças infecciosas (…) e a inexistência de outro tratamento eficaz disponível para a Covid-19”. Como àquela altura a indicação do uso da substância já era duvidosa, o material deixa patente a preocupação de gestores da Saúde em não deixar rastros. Instada a emitir um parecer sobre a publicação da norma, a Advocacia-Geral da União estranhou o fato de o processo ter chegado ao órgão sem a assinatura de Pazuello. “Cumpre observar que o processo não veio acompanhado de despacho, bem como não foi encaminhado pelo titular máximo do órgão do Ministério da Saúde”, apontou a AGU (leia abaixo).

A AGU observou a falta da chancela de Pazuello no protocolo da cloroquina
Na documentação, há ainda atas de reuniões da cúpula do Ministério da Saúde destinadas à discussão do tratamento precoce. Duas delas aconteceram em 9 e 14 de junho do ano passado, no 3° andar do prédio onde fica localizada a Secretaria Executiva. Em uma dessas reuniões, os participantes avalizaram um dos maiores absurdos da extensa lista de equívocos do governo: a orientação para a prescrição de cloroquina para crianças e gestantes (leia abaixo). Estava presente na reunião a secretária de Gestão do Trabalho do ministério, Mayra Pinheiro.

Lista de presença de reunião para tratar de prescrição de cloroquina para crianças e gestantes
Conhecida no próprio governo como “Capitã Cloroquina”, pelo empenho com que sempre defendeu o remédio propagandeado por Bolsonaro, Mayra deve ser uma das protagonistas da CPI da Covid – já há pelo menos três requerimentos de convocação da médica. À época do lançamento do protocolo de tratamento contra o coronavírus, coube a Mayra Pinheiro fazer a defesa pública do “Kit Covid”, tarefa que ela segue à risca até hoje. Recentemente, veio à tona a informação de que ela mesma chegou a enviar um ofício à prefeitura de Manaus, às vésperas do colapso no sistema de saúde da capital amazonense, em que afirmava ser “inadmissível” a não adoção do “tratamento precoce”“As políticas públicas não podem ser construídas com base em achismos, mas a partir de evidências científicas apontadas pelas entidades médicas”, afirma o senador e integrante da CPI Alessandro Vieira, para quem a prescrição indiscriminada de cloroquina é uma importante “peça do quebra-cabeça” a ser montado pela comissão para demonstrar as falhas do governo.

Recomendada para tratar de malária, artrite e lúpus, a cloroquina foi considerada ineficaz pela Organização Mundial da Saúde para o tratamento da Covid-19 em maio do ano passado, dois meses após o início da pandemia no país. Não demorou para que estudos demonstrassem que o medicamento também elevava o risco de morte dos pacientes – um dos efeitos colaterais mais graves é a arritmia cardíaca. Mesmo ciente dos perigos, o governo Bolsonaro, além de recusar àquela altura a compra da vacina da Pfizer, cujo primeiro lote só desembarcou nesta quinta-feira, 29, no país, persistiu na desenfreada campanha pela distribuição do remédio e mobilizou o Exército para ampliar a produção da substância no país.

Um ofício assinado de próprio punho pelo então ministro da Defesa, o general Fernando Azevedo e Silva, atesta que, entre 2015 e 2018, o laboratório do Exército havia produzido 250 mil comprimidos de cloroquina de 150 miligramas. A produção saltou para 1,2 milhão de unidades (leia abaixo) apenas nos primeiros 3 meses de 2020. Até junho, haviam sido produzidos 3,2 milhões de comprimidos – ou seja, não foi por acaso que o consumo do remédio pelos brasileiros cresceu 358% no primeiro semestre de 2020. Outro documento subscrito por Azevedo, que deixou o governo recentemente, diz que a alta na produção da cloroquina só foi possível graças a uma suplementação orçamentária de 1 milhão de reais. “Foram atendidas até o momento todas as pautas de distribuição (da cloroquina), acrescenta o texto.

Documento assinado por Azevedo, então ministro da Defesa: produção de cloroquina em larga escala
No mesmo material obtido por Crusoé consta uma determinação da chefe de apoio logístico do Exército, Sandra Monteiro de Oliveira, para a compra sem licitação, e de uma só vez, de 500 quilos do ingrediente farmacêutico (leia abaixo) necessário para produção de cloroquina, ao custo de 630 mil reais. O termo de referência diz que a compra se justifica porque a “cloroquina é preconizada no tratamento da Covid”“A aquisição desse insumo visa ao combate da doença, sendo considerado o caráter emergencial mundial”, afirmou o Exército, para justificar a dispensa de licitação. O prazo para entrega do produto, devido à emergência sanitária, foi de 20 dias. A compra saiu pelo dobro do valor pago em relação a outras licitações feitas pelo próprio governo. Mas o Exército justifica que “o preço praticado pelos fornecedores de matéria-prima” sofreu com a alta do dólar.

O Exército determinou a compra de 500 quilos de insumo para cloroquina
O Ministério da Saúde tem se recusado a informar parlamentares sobre os gastos da distribuição de cloroquina, alegando ter “equipe reduzida” no período da pandemia. Com a repercussão da CPI, demandas como essa não poderão ficar sem resposta. “Imagina se todo esse tempo, essa energia e esses recursos públicos tivessem sido investidos para comprar vacinas ou oxímetros, por exemplo?”, questiona o consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia Alexandre Naime, que deve ser ouvido na CPI como representante da Associação Médica Brasileira – ele ajudou a elaborar o posicionamento em que a AMB recomendou “banir” do tratamento contra a Covid remédios sem eficácia, como a cloroquina.

Quem também será chamada a colaborar é a procuradora da República Luciana Loureiro Oliveira. A integrante do Ministério Público Federal preside um inquérito civil aberto para apurar se Eduardo Pazuello cometeu atos de improbidade no comando da Saúde. Entre os assuntos na mira do MPF, está a criação do aplicativo TrateCov, outra frente de apuração da CPI da Covid. O sistema foi lançado pelo ministério em janeiro, com o objetivo de orientar profissionais de saúde no diagnóstico e no tratamento de pacientes com coronavírus. O aplicativo, entretanto, funcionava como um robô que prescrevia cloroquina: qualquer sintoma inserido no sistema levava a uma recomendação de prescrição do “Kit Covid”, até mesmo para bebês recém-nascidos. A repercussão foi catastrófica e o governo justificou que a tecnologia, ainda em fase de testes, havia sido liberada indevidamente por um hacker. Como a justificativa tinha ares de desculpa esfarrapada, o Ministério Público pediu explicações ao Ministério da Saúde.

Apavorados com o desenrolar da CPI, senadores governistas já preparam uma contraofensiva. Depois de uma semana de derrotas para o governo, como a confirmação de Renan Calheiros na relatoria da comissão, na esteira de uma malfadada tentativa de recorrer à Justiça – um juiz de primeira instância conhecido do bolsonarismo chegou a proferir uma decisão teratológica barrando o nome do cacique alagoano, mas a sentença foi derrubada horas depois –, parlamentares alinhados com o Planalto apresentaram requerimentos para a convocação de alguns dos poucos médicos que se dignaram a defender publicamente a cloroquina.

Tony Winston/MSTony Winston/MSPazuello falará à CPI na quarta: depoimento é um dos mais aguardados
Entre esses médicos, está Nise Yamaguchi, que foi cotada para assumir o Ministério da Saúde após a demissão de Mandetta justamente por ser entusiasta do remédio. O detalhe é que o requerimento de convocação de Yamaguchi à CPI foi produzido dentro do próprio Palácio do Planalto, mais precisamente por uma assessora da Secretaria de Governo. O governo espera que ela não se constranja em desfiar os versos da cartilha de Bolsonaro debaixo dos holofotes da CPI. Quem andou se constrangendo ao longo da semana foi o ministro da Casa Civil, general Luiz Eduardo Ramos após vir a público uma gravação em que ele diz que tomou vacina contra a Covid escondido. “Tomei escondido, né, porque a orientação era… (inaudível), mas vazou. Eu tomei e vou ser sincero, porque, eu, como qualquer ser humano, eu quero viver.” Isso não ajuda Bolsonaro, definitivamente.

A próxima semana promete esquentar de vez a CPI. A pedido da oposição, além de Mandetta, ainda irá depor na terça-feira o ex-ministro Nelson Teich, que também será indagado, entre outros temas, sobre os medicamentos recomendados pelo governo. No dia seguinte será a vez de Eduardo Pazuello, no que já é um dos depoimentos mais aguardados da comissão. A julgar pelo plano de trabalho inicial da CPI, as linhas de investigação incluirão também a omissão do governo na encomenda de vacinas para conter o vírus, o colapso da saúde no Amazonas e as ações destinadas aos povos indígenas, para os quais o governo também orientou o uso de cloroquina.

Enquanto o governo, em um movimento de aflição, tenta ajustar formas de tentar ludibriar a opinião pública, no cenário internacional o Brasil é alvo de chacota pela defesa de remédios tão inúteis quanto perigosos. Recentemente, o primeiro-ministro francês, Jean Castex, arrancou risadas de parlamentares em Paris ao criticar a prescrição de cloroquina pelo governo de Jair Bolsonaro. Como para os brasileiros esse assunto não tem graça nenhuma, ainda mais com o trágico anúncio de que o país alcançou nesta semana mais de 400 mil mortes pela doença, a comissão terá a chance de levar à responsabilização os agentes públicos que viraram as costas para a ciência e enfiaram o Brasil no abismo. Em especial, o presidente da República.

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