ReproduçãoDoria com Marcelo Braga: uma mistura complicada entre público e privado, em vários aspectos

O braço chinês de Doria

Quem é o advogado metido em transações financeiras heterodoxas e relações suspeitas com o poder que comanda o Lide China, a frente oriental do grupo criado pelo governador paulista
23.04.21

No começo de 2019, logo após a posse do governador João Doria, um carro preto blindado entrou no Palácio dos Bandeirantes carregado com garrafas de uísque e champagne. As bebidas seriam servidas em um convescote na sede do governo paulista e eram um mimo oferecido por Marcelo Braga Nascimento, um advogado abastado que ficou muito íntimo do tucano depois que ele entrou para a política. Pouco antes do coquetel, Braga havia servido um almoço em seu apartamento para comemorar o aniversário de Doria e sua apertada vitória na campanha eleitoral, da qual participou ativamente. O advogado abrigou em um de seus imóveis o comitê do PSDB e recebeu 300 mil reais para fazer a assessoria jurídica da candidatura. Desconhecido no cenário político, ele teve um breve momento de fama em 2017, quando espalhou dezenas de bandeiras do Brasil pelas ruas de São Paulo, com propaganda de seu escritório, em uma ação autorizada pela gestão do então prefeito João Doria. O objetivo declarado era estimular o patriotismo dos paulistanos, em plena onda antipetista. A repetida aversão à “bandeira vermelha” era mera retórica política. Desde aquela época, Braga comanda a “filial chinesa” do Lide, o grupo empresarial fundado por Doria em 2003, promovendo eventos pagos e reuniões entre empresários e agentes públicos na China e no Brasil, inclusive com o próprio governador e com seu vice, Rodrigo Garcia.

Pelo enorme interesse das empresas brasileiras no mercado e no capital chinês, o Lide China já era considerado a “menina dos olhos” de Doria quando ele se elegeu prefeito e teve de se afastar formalmente do comando de toda a organização, que tem como chairman o ex-ministro Luiz Fernando Furlan. Na prática, porém, o governador nunca deixou sua frente privada de negócios de lado. Ele mantém despachos frequentes com Celia Pompeia, vice-presidente executiva do grupo, e transferiu sua participação societária nas empresas para o filho mais velho, João Doria Neto, o Johnny. Já o braço chinês do Lide foi para o advogado das bandeiras, que já era filiado ao grupo, circulava pelas mesmas rodas sociais frequentadas por Doria – de Campos do Jordão a Miami – e havia feito generosas aquisições das esculturas produzidas pela primeira-dama, Bia Doria (uma única peça dela chega a custar até 150 mil reais). Marcelo Braga assumiu a presidência do Lide China em julho de 2017, no mesmo mês em que Doria fez sua primeira viagem oficial ao país asiático, como prefeito, com o objetivo de vender uma carteira de projetos de parceria público-privada e de privatizações na capital paulista. Na delegação do tucano, estavam alguns de seus secretários. A comitiva voltou trazendo na bagagem apenas doações de câmeras de segurança e drones, além de algumas promessas de investimentos que nunca se concretizaram. Nesse período, Braga se cacifou também como advogado de confiança de Doria e assumiu a defesa do governador em uma ação de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público por suposta fraude na licitação do carnaval de rua de 2018 – o processo acabaria extinto pela Justiça tempos depois.

Fabio Leite/CrusoéFabio Leite/CrusoéA sede do Lide China, em São Paulo: negócios se fundem com escritório de advogado ligado ao governador
O braço chinês do Lide de Doria opera, na prática, como uma espécie de unidade de negócios do escritório de Marcelo Braga. A sede do Lide China fica em São Paulo mesmo, em um portentoso casarão de arquitetura neoclássica no bairro do Jardim América. O imóvel pertence à banca. Além de Braga, o vice-presidente do Lide China, Everton Monezzi, e seu CEO, José Ricardo dos Santos Luz Júnior, também são sócios do escritório de advocacia, que custeia todas as despesas do “negócio da China”, como compra de brindes, contratação de buffet para eventos e o serviço de tradutores. A seção oriental do Lide fica com a receita das anuidades pagas pelas empresas filiadas – hoje são 30 companhias – e repassa uma parte do dinheiro à matriz do Lide, onde atua o filho de Doria, pelo uso da marca. A mistura é flagrante. Crusoé teve acesso a documentos que mostram alguns dos pagamentos recebidos pelo escritório em 2018, que vão de alguns milhares a 2,3 milhões de reais. Na relação, há empresas que possuem concessão de rodovias, uma empreiteira que venceu recentemente a licitação de uma obra do metrô do governo paulista e até pagamentos da TV Bandeirantes, que anunciou no fim de 2019 uma parceria com uma companhia de mídia chinesa em um evento que contou com a presença do próprio João Doria. A relação inclui os pagamentos feitos pelo PSDB, que continuou pagando consultoria jurídica e alugando o imóvel de Marcelo Braga, que fica a 500 metros da sede do Lide China, mesmo depois da campanha.

Além das transferências feitas pelas empresas, o escritório do presidente do Lide China movimentou grandes quantidades de dinheiro em espécie, segundo o relato de um ex-funcionário que moveu uma ação trabalhista contra a banca justamente por fazer “serviços particulares” para Marcelo Braga. O funcionário diz que transportou volumes elevados de dinheiro vivo desde agências bancárias na capital e outros endereços até a sede do escritório. Em alguns casos, o veículo usado era aquele mesmo carro preto blindado que foi levar as bebidas de cortesia até o Palácio dos Bandeirantes, no início do governo Doria. Em uma das operações de transporte de dinheiro, diz o relato do funcionário, as notas estavam armazenadas em duas caixas de uísque. As movimentações de dinheiro vivo teriam sido mais intensas entre os anos de 2017 e 2018. Elas foram confirmadas por outras duas testemunhas ouvidas por Crusoé sob a condição de anonimato. Entre os pagamentos feitos pelo escritório de advocacia do presidente do Lide China, chamam atenção cheques que somam cerca de 1 milhão de reais emitidos entre julho e dezembro de 2018 a Claudio Carvalho, braço direito de Doria na prefeitura que se associou à banca de Marcelo Braga depois que o tucano renunciou ao mandato de prefeito para concorrer a governador.

Divulgação/Governo de SPDivulgação/Governo de SPDoria recebe delegação chinesa no Palácio dos Bandeirantes: agenda acompanhada pelo braço oriental do Lide
Ex-executivo da construtora Cyrela, Carvalho foi um dos assessores que convenceu Doria a colocar Braga à frente da consultoria jurídica da campanha ao governo. Presidente do Lide Solidariedade, outro braço da organização, ele caiu nas graças do tucano quando passou a levar até ele uma série de empresários interessados em fazer doações para a prefeitura. Doria criou um cargo no primeiro escalão, o de secretário especial de Investimento Social, para abrigar Carvalho, que também é advogado. Depois, o colocou como secretário das prefeituras regionais no lugar do então vice-prefeito Bruno Covas, o que gerou atrito político à época. Foi nesse período que Carvalho autorizou Marcelo Braga a instalar as bandeiras do Brasil com publicidade do escritório de advocacia em algumas pontes da cidade. Apesar dos pagamentos recebidos da banca em 2018, Claudio Carvalho não inclui sua passagem pelo escritório no Braga Nascimento no currículo. Em abril de 2019, ele se associou a Athié Wohnrath, uma empresa de arquitetura e construção de alto padrão que doou a mobília para o gabinete de Doria quando ele foi prefeito e fez, recentemente, uma reforma em um dos seis imóveis que o governador possui em um mesmo quarteirão no bairro dos Jardins, área nobre de São Paulo.

A ligação de Doria com a China e com empresários chineses é estreita. Em todas as vezes que ocupou cargos públicos, ele fez questão de visitar o país. A primeira viagem ocorreu em 1987, quando foi presidente da Embratur, a agência brasileira de promoção ao turismo, no governo de José Sarney. Em agosto de 2019, já como governador, ele promoveu uma viagem ao país que mais cresce no mundo com 40 empresários. A expedição, batizada pelo próprio de “Missão China”, foi destinada a “ampliar cooperação e atrair investimentos”. Entre os integrantes da comitiva, estava o CEO do Lide China, José Ricardo, que morou cinco anos naquele país. Foi nessa viagem, aliás, que Doria inaugurou o escritório da agência de fomento do governo paulista, a InvestSP, em Xangai, para ser um “ponto de apoio para as empresas brasileiras”. Também foi quando o presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, visitou as instalações da Sinovac – essa aproximação foi considerada crucial pelo governo para o acordo assinado no ano passado com o laboratório chinês para a compra da vacina Coronavac. Dois meses depois da missão oficial de Doria, foi a vez de o Lide China promover sua “business trip” para o país asiático, levando empresários filiados ao grupo. Mais uma vez, o público se misturou com o privado. O Lide levou o vice-governador Rodrigo Garcia e o secretário de Infraestrutura, Marcos Penido. A comitiva contou ainda com o filho de Doria. No mês seguinte, José Ricardo levou para uma reunião com Garcia a presidente de um conselho de promoção do comércio internacional na China que tem mais de 700 mil empresas associadas e é parceiro do Lide China. Outros encontros do vice e do governador João Doria com autoridades e empresários chineses também contaram com a participação do braço chinês do Lide.

ReproduçãoReproduçãoNesta quinta, o site oficial do Lide apontava Braga como presidente, mas staff de Doria dizia que ele já não ocupa mais o cargo
Crusoé, José Ricardo disse que o Lide China “tem atuação absolutamente independente do governo” e que “há uma tendência viciada” de fazer a conexão de Doria com o grupo de líderes empresariais que ele fundou. “É uma relação profícua, positiva. Mas o João Doria, da mesma forma que atende o Lide China, atende outras plataformas e outros empresários”, afirmou. Apesar do discurso, o Lide China está debruçado neste momento sobre outro ativo vinculado ao governo tucano, a Coronavac – sim, também há vacinas na história. O dirigente disse a Crusoé que tem sido procurado por muitas empresas brasileiras e estrangeiras interessadas em importar a vacina da Sinovac ou de outros laboratórios que já produziram o imunizante. “Tem muito mercado pela frente. Então, o Lide China tem feito, sim, essa aproximação, essa interlocução com várias empresas chinesas e indianas para atender a demanda do empresariado brasileiro”, afirmou José Ricardo, que já conversou com representantes dos laboratórios chineses Sinovac e Sinopharm e do indiano Bharat Biotech. Segundo ele, as empresas produtoras de vacina ainda estão com dificuldades de atender à enorme demanda mundial pelo imunizante e a prioridade, como no caso da Sinovac, tem sido a venda para governos. “Por incrível que pareça, ninguém está falando em dinheiro. Está todo mundo falando em saúde, porque a gente sabe que a melhora da economia depende da reabertura do país”, emendou.

O histórico do escritório que comanda o Lide China é desabonador quando há cifras envolvidas. A banca é alvo de inquéritos policiais e de uma série de ações judiciais por apropriação indébita de valores dos clientes. Braga fez fortuna como advogado atuando basicamente em causas milionárias contra a Sabesp, a companhia de saneamento básico do governo paulista. São dezenas de processos nos quais o advogado representa condomínios, shoppings e hospitais que questionam judicialmente excessos na cobrança da tarifa de água ou esgoto. Nos últimos anos, vários clientes se deram conta de que ganharam a disputa contra a Sabesp, mas nunca viram a cor do dinheiro pago pela companhia em razão dos processos. O escritório de Braga recebia os valores, mas não os repassava aos clientes que representava. Em uma parte dos casos, Braga já foi condenado a fazer o repasse do dinheiro a quem de direito. Só em uma ação movida pelo Senac de São Paulo, o ressarcimento soma mais de 8 milhões de reais. Em dezembro, o escritório chegou a ter os bens bloqueados pela Justiça em outras ações. Diante da série de derrotas judiciais que tem pesado sobre o caixa do escritório, Marcelo Braga decidiu ser menos benevolente com o PSDB, partido para o qual advoga. No dia 12 de abril, ele entrou com um pedido de conciliação na Justiça para dobrar o valor do aluguel da sede do partido, hoje em 20 mil reais, dizendo que o valor é “muito inferior” ao preço de mercado para a região. Segundo pessoas próximas de Doria, o governador tem agora evitado contato com advogado enrolado nos últimos meses, mas ele segue firme tocando o braço chinês do Lide.

Zhang Yuwei/Xinhua NewsZhang Yuwei/Xinhua NewsFábrica da Sinovac: o CEO do Lide China admite que está intermediando interesses de empresários que querem comprar a Coronavac
Crusoé questionou o próprio advogado Marcelo Braga, presidente do Lide China, sobre os pagamentos recebidos pelo escritório de empresas com contratos públicos e interessados em parcerias com chineses e acerca das retiradas de dinheiro em espécie, mas o escritório limitou-se a dizer, por meio de nota, que “as relações entre o escritório e seus clientes têm caráter privado, sem interesse público, e são protegidas por sigilo profissional previsto em lei”. A banca disse ainda que “o mesmo vale para suas despesas”. Sobre as inúmeras ações judiciais nas quais o escritório tem sido obrigado a indenizar clientes por ter se apropriado indevidamente de valores, a nota afirma que “processos judiciais decorrem de conflitos comuns a qualquer escritório ou empresa e não estão resolvidos até que transite em julgado a última decisão”. O escritório não quis informar o nome dos filiados ao Lide China, nem o valor das anuidades, nem a taxa paga à matriz do grupo fundado pelo governador João Doria. “O grupo não tem o Estado como sócio, nem utiliza dinheiro público. Paga seus impostos em dia e não responde a qualquer processo judicial. As relações do Lide China com o governador João Doria remontam unicamente ao tempo em que ele era presidente do Grupo Lide”, diz o texto.

Já o governador João Doria afirmou, também por meio de nota, que o CEO do Lide China, José Ricardo dos Santos Luz, “não participou da comitiva oficial da Missão China” realizada pelo governo em agosto de 2019. Mas o próprio CEO do Lide China admitiu a Crusoé que viajou juntamente com os empresários e o presidente da InvestSP, Wilson Mello, um dia antes da partida de Doria com secretários de estado. Na China, José Ricardo gravou um vídeo ao lado de Doria (assista aqui), no qual o governador enaltece a viagem. Sobre a participação do vice-governador Rodrigo Garcia e do secretário Marcos Penido na viagem organizada pelo Lide à China em outubro, a assessoria do tucano afirmou que eles “foram convidados e aceitaram o convite” para “fortalecer as relações comerciais entre a China e São Paulo, apresentar oportunidades de investimentos no estado e conhecer inovações tecnológicas”. A nota de Doria diz ainda que o CEO e o presidente do Lide China não participaram de reuniões com empresas chinesas no palácio, mas registros feitos pelo fotógrafo oficial do governo mostram José Ricardo e o vice-presidente do braço chinês do Lide, Everton Monezzi, sentados ao lado do próprio governador durante reuniões com uma delegação chinesa da Província de Shanxi, em outubro de 2019. O presidente do Lide China também esteve ao menos uma vez na sede do governo para acompanhar um encontro intermediado por ele entre um grupo chinês e o vice-governador, Rodrigo Garcia.

Na noite desta quinta-feira, 22, horas antes da publicação da presente reportagem, a assessoria do Palácio dos Bandeirantes – e não a do Lide, diga-se – enviou mensagem a Crusoé dizendo que Marcelo Braga não é mais presidente do Lide China e que o cargo estaria, hoje, sendo ocupado por José Ricardo, o sócio do escritório dele. A informação, porém, não condiz com o que informa o próprio Lide. Além de não ter contestado em nenhum momento a posição de Braga em seu organograma, o grupo o apontava até esta quinta, em seu site oficial, como presidente. Indagados, os mesmos assessores não souberam informar quando se deu a troca — ao que tudo indica, se ela de fato ocorreu, foi em razão da apuração desta reportagem. Os auxiliares do palácio também não esclareceram por que, em mais uma evidência da mistura de interesses, coube ao staff de Doria — e não ao do Lide — o papel de tentar diminuir a relevância do braço chinês do governador na história. Não cola, nem em mandarim.

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