Adriano Machado/CrusoéBolsonaro está em pânico por saber que a CPI pode complicar de vez sua situação

Cercado e desesperado

O mandato de Jair Bolsonaro nunca esteve tão em risco quanto agora, com a iminente abertura de uma CPI que, se quiser, nem precisará fazer muito esforço para culpá-lo pela tragédia da pandemia. Na reportagem a seguir, listamos cinco fatos que, por si, podem configurar crime de responsabilidade do presidente
16.04.21

No Brasil, CPIs são imprevisíveis. Na dúvida, é melhor para todo e qualquer governo jamais enfrentá-las. Para uma gestão já altamente instável e para um presidente que assiste quase que impassível à erosão de sua popularidade, pode ser ainda mais aterrador. Por isso, Jair Bolsonaro nunca esteve sob um risco tão grande – nem mesmo quando o ex-ministro da Justiça Sergio Moro deixou o governo ou quando o ínclito Fabrício Queiroz foi preso. Nas duas ocasiões, havia margem de manobra e tempo suficientes para recuperação política. Agora, o espaço para Bolsonaro diminui cada vez mais, o que ajuda a explicar o seu estado de pânico durante a semana.

A CPI da Covid, cuja lista de integrantes foi oficialmente apresentada nesta quinta-feira, 15, pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, representa um enorme flanco aberto contra o governo e o fato novo que Bolsonaro jamais imaginou encarar neste ano pré-eleitoral. Por mais que a ampliação do escopo da investigação para gastos de verbas federais por estados e municípios – uma mudança alcançada graças a uma articulação que envolveu pessoalmente o presidente – possa ajudar a lançar uma cortina de fumaça sobre o que realmente importa, que é a trágica condução da pandemia pelo governo federal, Bolsonaro tende a ser o foco principal da comissão. Assim, qualquer deslize pode ser fatal. Se a CPI deslanchar, no melhor dos cenários para o governo o presidente pode amargar um desgaste político capaz de se arrastar até as eleições. Se tudo der errado para o Planalto, Bolsonaro não chegará ao fim de 2022 no cargo.

O potencial explosivo da CPI da Covid é especialmente maior para o presidente por uma simples e óbvia razão: ao contrário das comissões parlamentares de inquérito responsáveis por arruinar governos que, no passado, teimaram em incorrer em práticas não republicanas, a que se destina a apurar o que Bolsonaro fez e deixou de fazer durante a pandemia nem requer grandes investigações. A CPI já nasce com um enredo muito bem desenhado. Há matéria-prima de sobra e pólvora em todos os lados para o qual se olhe – basta riscar o fósforo. As ações do presidente que influenciaram diretamente na morte de mais de 350 mil brasileiros estão fartamente comprovadas em vídeos, fotos, discursos, atas de reuniões ou postagens em redes sociais realizadas desde março de 2020, quando o coronavírus chegou ao país. “No Brasil, a resposta federal foi uma combinação perigosa de inação e erros”, constata um estudo publicado nesta semana pela revista Science, que atribui a Bolsonaro a culpa pelo desastre na pandemia. Ou seja, basta vontade política para a CPI embalar e complicar de vez a situação do governo.

Juristas ouvidos por Crusoé afirmam que, desde a eclosão da pandemia do coronavírus no Brasil, o presidente cometeu uma série de crimes de responsabilidade, passíveis de serem enquadrados na lei do impeachment. Esse quadro restou configurado em pelo menos cinco situações, como listamos a seguir.

A negligência com as vacinas 

Apesar de a farmacêutica Pfizer, desde agosto de 2020, ter feito três propostas para o fornecimento de 70 milhões de doses de sua vacina ao Brasil, com entrega do produto a partir de dezembro, o governo brasileiro demorou a responder às ofertas e perdeu a oportunidade de compra naquela ocasião. O primeiro lote das vacinas da Pfizer compradas diretamente pelo Brasil, sem a intermediação do consórcio formado pela OMS, só chegará em meados do ano. O presidente também boicotou a Coronavac, vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan, ligado ao governo de São Paulo, em parceria com a empresa chinesa Sinovac. Em diversas ocasiões, Bolsonaro questionou a credibilidade e a segurança do imunizante e afirmou que os brasileiros não seriam “cobaias”. O episódio mais grave foi a decisão de suspender a compra de 46 milhões de doses anunciadas em outubro pelo então ministro Eduardo Pazuello. A briga política em torno da Coronavac atrasou as tratativas para a distribuição dos imunizantes. “De todas as omissões do presidente na pandemia, o fato que caracteriza de forma mais objetiva o crime de responsabilidade é a recusa na compra de vacinas. Havia um horizonte político óbvio de antagonismo com o governador de São Paulo, João Doria, e o presidente abriu mão de comprar imunizantes alimentado por uma rivalidade política, o que é ainda mais grave”, afirma o criminalista Davi Tangerino, professor da Escola de Direito de FGV São Paulo e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

O discurso negacionista

Mesmo com os alertas internacionais sobre o potencial letal da Covid-19, Bolsonaro negou a gravidade da doença e minimizou o perigo do coronavírus desde que a doença aportou no Brasil. Em suas primeiras declarações, disse tratar-se de uma “gripezinha”. Deixar de reconhecer a seriedade da Covid foi mais uma das grandes omissões do presidente e desencadeou a sequência de equívocos que transformaram o Brasil em um perigo sanitário mundial, além de ter aberto caminho para que o país ultrapassasse a triste marca de 360 mil mortos pelo vírus. “A omissão do governo na pandemia gerou consequências graves. Estamos falando do direito à vida, que o presidente negligenciou e está expresso na Constituição: o primeiro papel de um presidente é preservar a vida de seu povo”, diz advogado criminal Gustavo Badaró, professor de Direito da USP.

O boicote às medidas restritivas

Logo no início da pandemia, em março de 2020, Bolsonaro saiu pelas ruas de Brasília promovendo aglomerações. O tour pela cidade ocorreu um dia depois de Luiz Henrique Mandetta, então ministro da Saúde, orientar sobre a necessidade de isolamento. Desde então, o chefe do Planalto passou a repetir o comportamento com frequência e a pregar quase que diariamente contra as medidas restritivas de circulação. Juristas que integram a comissão formada pela OAB para analisar a gestão da pandemia, entre eles Miguel Reale Júnior e Carlos Ayres Britto, apontam o boicote ao isolamento e “sua renitente resistência em operacionalizar medidas como a restrição de circulação de pessoas e de atividades comerciais, que são insistentemente recomendadas pelos especialistas como medidas necessárias para evitar a disseminação descontrolada do coronavírus” como exemplo “de omissão penalmente relevante do presidente da República”, passível de enquadramento como crime de responsabilidade.

A sabotagem às máscaras de proteção

Desde que o coronavírus foi detectado no país, o presidente Jair Bolsonaro se recusou a usar máscaras contra a Covid-19, mesmo após a publicação de um decreto em Brasília que obrigou o uso da proteção em todos os espaços públicos. Em fevereiro deste ano, quando o Brasil batia sucessivos recordes de mortos pela Covid, o presidente disse em uma live que as máscaras ofereciam riscos à saúde. Ele ainda vetou 25 itens de uma lei aprovada pelo Congresso que obrigava o uso da proteção. Bolsonaro também não para de recomendar o uso de remédios sem comprovação científica para o tratamento da Covid, como a hidroxicloroquina e a ivermectina. As atitudes do presidente, segundo especialistas, representam uma afronta ao direito à saúde, previsto na Constituição. “O mandatário maior do país não pode veicular fake news, sobretudo em assunto de saúde pública. Há precedente judicial para enquadrá-lo pela divulgação de afirmações falsas por servidor público”, prossegue Tangerino. Bolsonaro também não para de recomendar o uso de remédios sem comprovação científica para o tratamento da Covid, ou mesmo como forma de evitá-la, como a hidroxicloroquina e a ivermectina.

As omissões na crise do Amazonas

De todas as tragédias provocadas pela pandemia no Brasil, a mais funesta foi a crise no Amazonas. O colapso hospitalar em Manaus e a morte de pacientes sufocados pela falta de oxigênio hospitalar levaram a que o sistema funerário da cidade registrasse um total de mortes 108% superior à média histórica. Com a postura do governo federal de eximir-se de responsabilidades, faltou interação entre os entes da federação, lacuna que foi determinante para a escalada de mortes na região norte do país. Como presidente da República, Bolsonaro não pode ser alvo da ação de improbidade como o ex-ministro Eduardo Pazuello, mas seus equívocos na crise do Amazonas podem ser caracterizados como omissão grave, o que o encaixaria na lei que prevê o afastamento por impeachment. “A falha no suporte de oxigênio para o Amazonas é um aspecto muito significativo da omissão do presidente na pandemia (o que configura crime de responsabilidade). O Ministério da Saúde foi avisado com antecedência, mas não atuou para prover o estado”, explica Badaró, da USP.

Agência SenadoAgência SenadoA conversa entre Kajuru e Bolsonaro tensionou ainda mais a relação do presidente com o STF
O comportamento de Bolsonaro ao longo da semana dá a medida do seu desespero em relação aos desdobramentos da CPI. Ao participar pessoalmente das costuras para tentar inviabilizar a comissão de inquérito, o presidente foi gravado em uma conversa com o senador Jorge Kajuru totalmente incompatível com o decoro exigido do cargo. Nela, Bolsonaro sugere ações para chantagear ministros do STF a fim de que eles não referendassem a decisão de Luís Roberto Barroso pela instalação da CPI, em que o magistrado se limitou a pedir para que o Senado cumprisse a Constituição, já que os requisitos para a abertura do inquérito estavam mais do que postos.

Entre as medidas de retaliação sugeridas por Bolsonaro estava a abertura de processos de impeachment contra ministros do Supremo – há um pedido de autoria do próprio Kajuru contra o ministro Alexandre de Moraes protocolado no Senado. Também na conversa, Bolsonaro reconheceu temer a convocação de Eduardo Pazuello, o subserviente general e ex-ministro da Saúde que deixou a pasta fazendo insinuações de que tinha algo a revelar. Ainda chamou o senador Randolfe Rodrigues, idealizador da comissão de inquérito, de “bosta” com quem teria de “sair na porrada”.

Até hoje não se sabe ao certo se a divulgação do áudio teria sido ou não uma trama urdida pela dupla – Kajuru assegura que o presidente sabia que estava sendo gravado e Bolsonaro jura ter sido traído. O fato é que a estratégia, se houve, foi mal sucedida e o diálogo contribuiu para ampliar ainda mais a tensão com o STF. O placar de 10 a 1 construído no plenário em favor da liminar de Barroso na quarta-feira, 14, refletiu o animus da corte.

A apreensão do Planalto, no entanto, já havia virado fato consumado após a leitura na terça-feira, 13, do requerimento de instalação da CPI por Rodrigo Pacheco. O tamanho do prejuízo para o governo vai depender de como o jogo será travado dentro da comissão. Entre os onze senadores que vão integrar a CPI, a maioria defende o início imediato do trabalho por meio de um sistema semipresencial, e aposta que ele irá prevalecer – o governo, que sempre foi contra o lockdown, chegou a defender um “fique em casa” exclusivo para os senadores, a fim de que a CPI começasse só depois da pandemia. A proposta, claro, virou motivo de chiste. “É claro que é possível começar a trabalhar com requerimentos, convocações, pedidos de informação, por exemplo”, diz o senador Otto Alencar, do PSD da Bahia, integrante do que se convencionou chamar nos bastidores do Senado de G-6 da CPI da Covid, grupo composto por senadores inclinados a fazer frente ao governo.

Edilson Rodrigues/Agência SenadoEdilson Rodrigues/Agência SenadoIdealizador da CPI da Covid, Randolfe faz parte do G-6 da comissão: grupo opositor ao governo já tem roteiro de convocações para depor
O bloco de oposição já tem até um roteiro preliminar. Uma das ideias da turma é trabalhar para convocar logo de início especialistas que possam explicitar os erros técnicos do governo na condução da crise. Numa segunda etapa, seriam chamados o ex-chanceler Ernesto Araújo e os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello. As medidas que já vêm sendo adotadas fora do Parlamento contra as autoridades que deveriam ter agido a tempo de evitar a expansão da catástrofe tendem a elevar ainda mais a temperatura dos depoimentos. Pazuello, por exemplo, está na berlinda. Na quarta-feira, 14, o Ministério Público Federal ajuizou uma ação de improbidade administrativa contra o general e outros representantes do ministério, pelas omissões no Amazonas. Com Pazuello na reta, a CPI virou uma preocupação também para os militares, que querem distância dos erros a serem investigados.

Além de Otto Alencar, integram o G-6 Randolfe Rodrigues, da Rede, o tucano Tasso Jereissati, o petista Humberto Costa e os emedebistas Renan Calheiros e Eduardo Braga. Em relação a esse último ainda pairam dúvidas sobre qual comportamento ele adotará no decorrer da CPI. Embora pose de “independente”, Braga tem mantido certa proximidade do governo e é acostumado a se dobrar aos encantos do poder. O Planalto já mandou avisar que, entre ele e Renan, prefere com folga a primeira opção para a relatoria. O MDB deverá assumir mesmo um posto estratégico, com base no critério da proporcionalidade partidária, por ter a maior bancada do Senado, com 15 parlamentares.

Ao G-6 ainda pode ser incorporado Omar Aziz, do PSD, mas sua linha de atuação também é considerada uma incógnita. Hoje ele pertence à ala “em cima do muro”, razão pela qual o próprio governo trabalha para cooptá-lo. Durante a semana, o líder do governo no Senado, o emedebista Fernando Bezerra Coelho, articulou para que Aziz seja o presidente da CPI. A legenda do senador, o PSD, além de integrante da base governista no Congresso, é dona da segunda maior bancada e já avisou que quer ficar com o cargo responsável por ditar o ritmo dos trabalhos. Joga contra Aziz, no entanto, o fato de ele ser investigado justamente por desvios na área da Saúde, quando foi governador do Amazonas.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéCiro Nogueira, do Centrão, vai integrar a tropa de choque governista
Do outro lado, alinham-se a favor de Bolsonaro os senadores Ciro Nogueira, do Progressistas, Eduardo Girão, do Podemos, Marcos Rogério, do DEM, e Jorginho Mello, do PL. Com quatro aliados declarados do Planalto e entre cinco e seis senadores aparentemente dispostos a fustigar o governo, os autoproclamados “independentes” serão os fiéis da balança.

Se o preço para controlar a CPI já sairia alto para o governo em qualquer circunstância, a fatura torna-se ainda mais salgada com o ambiente conflagrado hoje no Congresso. O Centrão, principal bloco de sustentação ao governo, segue fazendo jogo duplo: aperta quando quer cargo e afrouxa quando é contemplado. Como cultiva o hábito de não ir até a cova com nenhum presidente de turno, os fisiológicos ultimamente têm exibido os dentes com mais frequência para o governo, cientes de seu momento de fragilidade. A discussão sobre o Orçamento é emblemática. Em reunião na terça-feira, 13, no Palácio do Planalto, o presidente da Câmara, Arthur Lira, alertou Bolsonaro que o governo perderá o controle de sua base se vetar o projeto orçamentário e não conseguirá mais aprovar nenhuma matéria no Congresso, incluindo as reformas tributária e administrativa. O ministro da Economia, Paulo Guedes, defende o veto desde que deputados e senadores manobraram para elevar em 26 bilhões de reais os gastos com emendas parlamentares. Guedes argumenta que, se sancionar a proposta, o presidente pode cometer crime de responsabilidade – mais um – que poderia acabar levando a um processo de impeachment, exatamente o mesmo risco que Bolsonaro corre se não tiver as rédeas da CPI.

A história é pródiga em exemplos de CPIs que tiveram efeitos deletérios a governos, como a CPI dos Correios, dos Bingos e a da Petrobras, mas também ostenta uma lista de comissões que consumiram muito dinheiro público e acabaram em pizza. Foi o caso da CPI do Apagão Aéreo, criada durante o governo Lula para investigar o caos na aviação do país. Então deputado federal, Jair Bolsonaro pressionou o STF na ocasião pela abertura das apurações envolvendo a gestão petista e o tribunal fez o mesmo que agora: reconheceu o direito da minoria à CPI e determinou sua instalação. Catorze anos depois, o capitão da reserva passou de pedra a vidraça. Nesta quinta, em sua live semanal, ele se referiu claramente ao risco de impeachment ao dizer que nada nem ninguém lhe tira o cargo. Na tábua de códigos do poder, quando um presidente da República precisa dizer isso, é porque sentiu o risco. “Só digo uma coisa. Só Deus me tira da cadeira presidencial. E me tira, obviamente, tirando a minha vida. Fora isso, o que estamos vendo no Brasil não vai se concretizar. Não vai mesmo. Não vai mesmo”

Sua paúra em relação à CPI ainda pode ser ilustrada por uma resposta atravessada dada a uma apoiadora que lhe pediu na terça-feira uma expressão simpática para uma foto. “Ainda quer que eu sorria depois do dia que eu passei?”, resmungou Bolsonaro. Se o presidente não tem por que sorrir, os brasileiros têm menos motivos ainda.

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