Roberto Casimiro/Fotoarena/FolhapressA

Troca de chumbo

Acusações de corrupção, lobby explícito e até ameaça de morte inflamam uma guerra bilionária no setor de transportes que opõe o ministro Tarcísio de Freitas a outros aliados do governo
09.04.21

Presidente da Associação Brasileira Interestadual de Turismo, Transporte Terrestre e Carga, a Abrittc, Odacy de Brito Menezes entrou no prédio da Agência Nacional de Transportes Terrestres, em Brasília, dizendo que sabia de um plano para matar o diretor do órgão, Davi Ferreira Barreto. Representante de poderosos interesses no setor, Odacy exigia uma reunião a sós com Davi Barreto, que inicialmente foi negada. Após muita insistência, ele foi recebido, mas, por precaução, o chefe de gabinete de Barreto acompanhou a conversa. Com voz amena, mas sempre em tom ameaçador, Odacy dizia ter em mãos os endereços e telefones de familiares do diretor da agência e sustentava, de forma ambígua, que conhecia a trama para assassinar o diretor. As ameaças constam de um inquérito aberto pela Polícia Federal, a pedido do Ministério da Infraestrutura, contra o presidente da Abrittc. Coube ao ministro Tarcísio de Freitas, em pessoa, solicitar a abertura da investigação.

O episódio ocorrido na sede da ANTT em 29 de janeiro de 2020 é parte de uma rumorosa briga ainda em curso no centro do poder, em Brasília, pelo controle de linhas interestaduais e internacionais de ônibus. Travada desde o início da gestão de Jair Bolsonaro, a disputa tem, de um lado, empresas de aplicativos que vendem passagens pela internet e atuam com o fretamento de ônibus e outras empresas novatas que querem entrar no mercado, historicamente dominado por clãs poderosos. Além de ameaças, a briga tem acusações mútuas de corrupção e lobby explícito. De um lado e de outro estão aliados de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro, incluindo o próprio Tarcísio de Freitas.

A disputa começou com a indicação de Davi Barreto para a direção da ANTT, em maio de 2019. Homem de confiança de Tarcísio, ele abriu a ofensiva contra as empresas tradicionais do ramo de transporte de passageiros cinco meses depois, ao aprovar, com apoio dos demais dirigentes da agência, uma norma que abria o mercado. Para a ANTT, a nova regra apenas confirmava a opção pelo modelo de autorização, e não mais de concessão, um entendimento que já estaria contemplado em uma lei aprovada pelo Congresso Nacional em 2014, sem nunca ter sido colocada em prática.

A mudança permitiu que novas linhas fossem operadas sem necessidade de licitação, o que mexeu com os interesses históricos do setor. Empresas que detinham concessões para atuar acusaram Barreto de fraude e apresentaram uma notícia-crime na Polícia Federal contra o diretor. Ele foi acusado de aproveitar o julgamento de um caso concreto, envolvendo um pedido de fusão de duas empresas, para, em uma curta reunião, modificar o marco regulatório do setor. Os denunciantes afirmaram que ele atuou de maneira fraudulenta e cometeu falsidade ideológica. A PF abriu um inquérito para apurar o caso. Depois de seis meses de investigação, o delegado responsável pelo inquérito, Cláudio Bandel Tusco, acredita que a instituição está no meio de um fogo cruzado. “É uma questão política e a Polícia Federal tenta evitar entrar nessa seara, porque a gente investiga crime. A princípio o que tem é acusação de um lado, acusação de outro, mas nada de concreto. Também sabemos das ameaças, que estão sendo apuradas”, disse ele a Crusoé. Tusco afirma que, até o momento, não restou comprovada a suposta fraude.

DivulgaçãoDivulgaçãoO prédio da ANTT, em Brasília: diretor da agência denunciou ameaça de morte
Na notícia-crime, as empresas também questionavam uma reunião de Davi Barreto, o diretor da ANTT, com representantes da Buser, empresa que vende passagem por aplicativo, às vésperas da publicação da norma que abriu o mercado. Os denunciantes alegam que o encontro, ocorrido em São Paulo, é mais uma prova de que Barreto estaria agindo por interesses próprios e de terceiros.

A briga tem como pano de fundo um mercado literalmente bilionário. O setor de transporte interestadual e internacional de passageiros fatura, por ano, nada menos que 7 bilhões de reais. As empresas que operam atualmente têm um público que gira em torno de 50 milhões de pessoas. Elas emitem, em média, 2,2 milhões de passagens anualmente. “É uma mina preciosa de dinheiro. Envolve interesses de gente grande”, diz o advogado Cláudio Borges, dono do escritório de advocacia contratado para fazer a representação contra o diretor da ANTT. Borges não revela quem está pagando por seus serviços e diz apenas que representa “pessoas que se sentiram desprestigiadas e insatisfeitas” pela decisão da agência. “Neste momento não tem como falar quem é meu cliente. As pessoas têm medo de represálias”, afirma. O advogado acusa o Ministério da Infraestrutura e o governo de atenderem interesses de um grupo restrito de empresas – as novas, interessadas em assumir um pedaço do mercado até então restrito às detentoras de concessão.

“O Tarcísio tem participação direta nisso. O Davi (Barreto) é um testa de ferro dele”, diz Borge. Além da investigação na Polícia Federal, o advogado também pediu a abertura de duas sindicâncias contra Barreto, no próprio Ministério da Infraestrutura e na ANTT, mas afirma que há “interferências internas para que as ações não andem”. Uma outra parte da disputa se dá na esfera judicial. Várias associações, como a Abrittc, presidida por Odacy Menezes, o homem acusado de ameaçar de morte o diretor da ANTT, foram aos tribunais na tentativa de defender seus interesses. Em tom belicoso, Odacy diz ter provas que podem levar à cadeia autoridades envolvidas na trama.

A associação presidida por Odacy é um mistério. Considerada inapta pela Receita Federal por não apresentar documentos, a entidade não tem nem site na internet e se recusa a informar quem são seus associados. “São muitas empresas, de São Paulo, Brasília, Bahia”, alega Odacy, sem dar o nome de nenhuma das companhias.  Sobre as supostas ameaças ao diretor da ANTT, Odacy nega ter mencionado um plano para matar Barreto.

Agência SenadoAgência SenadoO setor de transporte de passageiros movimenta 7 bilhões de reais por ano
Embora quem está colocando a cara na disputa se negue a dizer quem são os maiores interessados, nos bastidores é sabido que entre eles há muitos poderosos. Por exemplo, senadores da República e grandes empresários acostumados a financiar campanhas de políticos. Até por isso, como são fortes os lobbies em torno do tema, o cabo de guerra vem se mantendo esticado em Brasília. Após a decisão de 2019 da ANTT, o diretor da agência foi pressionado a voltar atrás, mas foi orientado pelo Ministério da Infraestrutura a não recuar. O governo dobrou a aposta. Tarcísio de Freitas convenceu o presidente Jair Bolsonaro a publicar um decreto, em 4 de dezembro de 2019, endossando a portaria que abriu o mercado. A avaliação dominante no governo era a de que o decreto fortaleceria a norma e evitaria um ambiente de insegurança jurídica.

No Senado, o decreto de Bolsonaro não foi bem recebido. O movimento de Tarcísio para convencer o presidente, menos ainda. Os senadores Rodrigo Pacheco, que à época ainda não era presidente da casa, e Acir Gurgacz, passaram a se mover para reverter a medida. Os dois são de famílias que têm empresas tradicionais de ônibus, beneficiárias de concessões, e se opõem à abertura do mercado – familiares de Gurgacz são donos de duas empresas de ônibus consolidadas há anos no mercado, a Eucatur e a Solimões, e Pacheco é ligado à Viação Real e à Viação Santa Rita. Um terceiro senador, Weverton Rocha, chegou a apresentar um projeto de lei para sustar o decreto presidencial. A proposta não andou porque sofreria resistência da base de apoio do governo. Por debaixo dos panos, os articuladores da ofensiva preferiram tentar a costura de um acordo com o Planalto. Eles avaliam que uma solução menos barulhenta seria melhor porque, se o assunto ganhar repercussão, a opinião pública tenderá a ficar ao lado do discurso do ministro da Infraestrutura, segundo o qual os usuários de ônibus sairão beneficiados com a abertura do mercado em razão da possível redução no valor das passagens.

Para tentar contrabalancear a disputa dentro da ANTT, Pacheco chegou a emplacar a indicação de um ex-assessor de seu gabinete, Arnaldo Silva Júnior, para uma das cinco vagas na diretoria da agência. Silva Junior já foi sabatinado e sua nomeação agora depende da aprovação pelo plenário. O presidente do Senado não quis falar com Crusoé sobre a disputa com o grupo de Tarcísio. Já Acir Gurgacz fez coro aos ataques ao ministro de Bolsonaro e ao próprio presidente.

Gurgacz criticou o que chama de “atitude estranha” e o “empenho pessoal” de Tarcísio de Freitas e de Jair Bolsonaro em torno do tema: “É um trabalho pessoal do Tarcísio. É ele que está conduzindo isso na Presidência. É uma questão pessoal dele que ninguém entende”. E continua: “Ninguém entende ele (Tarcísio) prejudicar um sistema de transporte que funciona bem. A norma (da ANTT) prejudica todo sistema de transporte brasileiro. Não tem critério nenhum para abrir novos mercados. E não existem novos (mercados). O que falta são estradas novas, ferrovias. Abrir novas linhas, qual interesse?”, afirma o senador, versado em práticas heterodoxas – condenado por uso irregular de recursos obtidos em um empréstimo junto a um banco oficial, até recentemente ele dava expediente no Senado durante o dia e tinha que passar a noite na prisão.

Júlio Nascimento/PRJúlio Nascimento/PRPacheco, cuja familia tem empresas de ônibus, é um dos principais personagens da disputa
Tarcísio de Freitas, por seu turno, tem defendido que o setor é fechado, voltado a dar lucro a poucas empresas e dominado por clãs políticos. Numa conversa com representantes de empresas que operam por meio de aplicativo, em 2 de dezembro do ano passado, o ministro pediu que o grupo “reconhecesse o esforço do ministério” em favor do plano de abrir o mercado. “Estamos na mesma linha, que é promover a competição”, disse. O grupo tinha sido recebido por Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Empolgado com a presença dos empresários, apoiadores do governo, o presidente sacou o celular do bolso e fez uma ligação por vídeo com Tarcísio. A aliança explícita do governo com os novos interessados no mercado gerou reação imediata. Duas semanas depois do encontro com Bolsonaro, o Senado aprovou um projeto de lei que definia um modelo mais restritivo para o setor de transportes, passando por cima do decreto presidencial e enterrando na casa a polêmica norma da ANTT. Rodrigo Pacheco atuou diretamente em favor da aprovação da proposta, na última sessão de 2020. O texto ainda depende de aprovação da Câmara.

De parte a parte, o lobby segue forte. Enquanto o Congresso não bate o martelo, um novo front foi aberto no Tribunal de Contas da União, onde as companhias tradicionais obtiveram uma decisão monocrática do ministro Raimundo Carneiro contra a decisão da ANTT de flexibilizar o mercado. O despacho também suspendeu todas as novas autorizações concedidas pela agência a partir da mudança na norma. O outro lado prontamente entrou em campo e, no plenário da corte, conseguiu derrubar a decisão de Carreiro. Também no TCU, o debate foi acalorado. “Poucas, pouquíssimas vezes, se é que uma vez houve, ao longo de mais de 25 anos de exercício da jurisdição nesta corte de Contas, tive a oportunidade de me defrontar com uma coleção de inverdades e falsidades como as constantes da denúncia ora submetida à apreciação do plenário”, reagiu o ministro Walton Alencar ao proferir seu voto. “Nunca é demais lembrar que, a partir de linhas de ônibus, monopolisticamente controladas, surgiram muitas das principais empresas nacionais, que ostentam plúrimos representantes em todos os setores do Congresso Nacional, muitas defendendo os interesses privados que ora se examinam”, emendou.

Em nota enviada a Crusoé, a ANTT se defende da acusação de que tenha atuado para beneficiar algum segmento ou empresas específicas. Depois da derrota no TCU, os políticos ligados ao setor de ônibus se preparam para uma nova ofensiva, que pode envolver novos pedidos de investigação e uma ação no Supremo Tribunal Federal. Nos bastidores, as acusações de que os adversários se movem à base de dinheiro sujo se repetem de todos os lados. A guerra ainda terá batalhas ferrenhas pela frente.

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