MarioSabino

O bobo certo

09.04.21

No julgamento da ação sobre o pedido de abertura de templos e igrejas durante o confinamento, Gilmar Mendes, sempre elegante e prudente nas palavras, ironizou o advogado-geral da União, André Mendonça, mais conhecido no STF como Andrezinho. Como o argumento em favor da abertura incluía a comparação entre a suposta segurança dos espaços de prática religiosa, em relação ao contágio pelo vírus da Covid, com a grande insegurança nos meios de transporte coletivo, Gilmar Mendes disse o seguinte sobre as perorações de Andrezinho:

“Quando Sua Excelência fala dos problemas dos transportes no Brasil, especialmente do transporte coletivo, e fala do problema do transporte aéreo, com a acumulação de pessoas, eu poderia ter entendido que Sua Excelência teria vindo agora para a tribuna do Supremo de uma viagem a Marte, descolado de qualquer responsabilidade institucional, com qualquer assunto no Brasil. Mas sua Excelência, fui verificar aqui, ‘googlar’, como dizem os mais jovens, e verifiquei aqui que ele era ministro da Justiça até recentemente, com responsabilidades institucionais, inclusive, de propor medidas.” 

E o ministro acrescentou:

”Sobre trânsito e transporte, me parece que está havendo um certo delírio nesse contexto geral. É preciso que cada um de nós assuma a sua responsabilidade. Isso precisa ficar muito claro. Não tentemos enganar ninguém. Até porque os bobos ficaram fora da corte.”

Andrezinho está disputando com Augusto Aras, procurador-geral da República, a vaga no STF a ser aberta daqui a pouco com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello. Neste momento, ambos competem para quem parecerá o mais terrivelmente evangélico aos olhos de Jair Bolsonaro. A abertura de templos e igrejas é uma exigência de pastores junto ao Planalto. Lançam mão de Deus, coitado, para ter de volta o óbolo, o dízimo, a grana, o tutu, a erva, a bufunfa, o cacau, a gaita, o vil metal. O bezerro de ouro precisa ser adorado, e nem todos têm reprise de novela para ser vendida para a TV Brasil, como forma de minorar o prejuízo. Nesse quadro de disputa entre Andrezinho e Augusto Aras, a frase “até porque os bobos ficaram fora da corte”, dita por Gilmar Mendes, foi interpretada pela imprensa como um recado a Andrezinho de que ele poderá deixar de contar com a bênção do ministro para ocupar a cadeira atualmente ocupada por Marco Aurélio. É preciso lembrar que, para vagas no STF, não é Deus quem abençoa, mas Gilmar Mendes.

Depois de ouvir um observador atilado da tragicomédia eternamente em curso em Brasília, concluí que a observação do ministro significa exatamente o contrário: o que se quer hoje, mais do que nunca, é bobo dentro da Corte. Andrezinho seria perfeito. Ele e Augusto Aras entenderam tudo errado: trata-se de ser terrivelmente o boboca certo.

***

Interessado súbita e inexplicavelmente em assuntos relativos à máfia siciliana, deparei com a seguinte passagem do livro Cosa Nostra — o Juiz e os Homens de Honra, de Giovanni Falcone e M. Padovani:

Um dos meus colegas de Roma, por sua vez, foi num dia de 1990 encontrar o famoso (mafioso) Frank Coppola, que acabara de chegar, e o provoca: ‘Signor Coppola, o que é a máfia?’ O velho Coppola, que tinha grande experiência, refletiu durante um momento e lhe disse: ‘Senhor Juiz, há três magistrados que querem, atualmente, ser procurador da República. Um é muito inteligente, o segundo muito apoiado pelos partidos do governo e o terceiro é um imbecil. Qual será escolhido? O imbecil. A máfia é isso.” 

Frank Coppola, ítalo-americano, era conhecido nos Estados Unidos como “Frank Three Fingers”. Mas que cérebro.

***

O neolulismo segue a toda no seu processo de lavagem da biografia do ex-condenado por corrupção e lavagem de dinheiro. O processo de lavagem lança a sujeirada na Lava Jato, amplificando o que seriam supostos pequenos tropeços legais em monstruosos ataques ao Estado de Direito. Ao ser informado sobre o assunto, o meu amigo Montaigne atravessou quase cinco séculos (ele insiste em fazer isso, coitado), para sussurrar no meu ouvido um trecho do ensaio Da Experiência:

“É forçado a fazer mal a varejo quem quer fazer bem por atacado, e injustiça nas coisas pequenas quem quer chegar a fazer justiça nas grandes.”

Valeu, Montaigne.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO