RuyGoiaba

Faltou ‘O Anjo Exterminador’ no jantar do PIB

09.04.21

Outro dia mesmo eu estava dizendo em um grupo de amigos — virtual, como convém à pandemia — que não aguentava mais gente fazendo analogias inteligentes do BBB com a “atual situação do país” ou pedindo voto no sertanejo bolsominion lá para levar o Brasil de volta à civilização (e, bom, o tal sertanejo saiu do programa e nós continuamos habitando a mesmíssima cloaca que foi da barbárie à decadência sem passar pela civilização, como diria o antropólogo Claude Lévi-Strauss, aquele que detestou a baía de Guanabaaaaara).

Mas acontece que eu mesmo, toda semana, sou obrigado a encontrar maneiras diferentes de falar mal da atual situação do Bananão, com ou sem analogia. Pior: preciso tentar achar algum humor em um noticiário que se empenha em bater recordes diários de hediondez. Nisso, por um desses milagres da livre associação de ideias — explicarei mais adiante, fiquem ligados —, cheguei a Luis Buñuel.

O grande cineasta espanhol, amigo de juventude de Salvador Dalí e Federico García Lorca, tinha um fraco por jantares chiques como ponto de partida de seus roteiros: dois de seus melhores filmes incluem jantares em que tudo dá errado do modo mais surreal possível (é o que as redes sociais chamariam hoje de “crítica social foda, meu”, só que genuinamente engraçada). Em O Discreto Charme da Burguesia, de 1972, um grupo de amigos é frustrado em suas tentativas de jantar, por motivos que vão desde os convidados chegando um dia antes do combinado até manobras militares dentro de casa, passando pela descoberta de um cadáver na sala ao lado e pela fuga dos anfitriões para fazer sexo no jardim — interpretada como sinal de que a polícia está chegando.

E há O Anjo Exterminador, de 1962, um dos últimos filmes da “fase mexicana” de Buñuel e um dos meus favoritos. Aristocratas se reúnem para jantar na mansão de um casal e não conseguem de modo algum sair da casa, apesar de não haver nada visível que os impeça; logo comida e bebida acabam, e os milionários se desfazem das suas máscaras de civilização e se animalizam. Não vou dar spoiler de como termina: recomendo a quem nunca assistiu ao filme que vá atrás. É, claro, uma alegoria da Espanha sob a ditadura de Franco, que exilou o cineasta por décadas — mas, como as melhores sátiras, é universal e nunca envelhece.

Considerando que os representantes do PIB nacional jantaram com Jair Bolsonaro nesta quarta, 7, ao lado de não apenas um, mas 340 mil cadáveres de pessoas vítimas da Covid — o que não evitou o jantar, muito menos impediu o presidente de ser aplaudido pelos convivas —, a solução buñuelesca para a “atual situação do país” não seria O Discreto Charme da Burguesia, mas sim O Anjo Exterminador: Bolsonaro, seus ministros e seus puxa-sacos endinheirados jantando eternamente no mesmo lugar, sem jamais conseguir sair. Nem há “máscaras de civilização” a cair, porque eles já não usam máscaras, tampouco são civilizados. Não há como negar que o Brasil melhoraria muito — e é uma situação menos improvável que o presidente se vacinar e virar um ser humano.

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A GOIABICE DA SEMANA

Eu escrevi lá em cima que explicaria a tal livre associação de ideias e vou explicar, por mais que me dê certa vergonha: esta coluna só saiu porque, sabe Deus como, imaginei Ed Motta cantando “Buñuel/ Foi pro céu”. O cineasta, que era bastante anticlerical e sempre se disse “ateu, graças a Deus”, talvez mereça mais o céu que André Mendonça e Augusto Aras, que na quarta, 7, defenderam no Supremo o direito inalienável de os fiéis cuspirem presencialmente uns nos outros e de irem mais rápido ao encontro de Jesus — levando junto muita gente que provavelmente preferiria adiar esse encontro. Se bem que a ideia de “céu” desses dois cristãos não vai muito além de uma daquelas cadeiras do STF.

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ALFREDO BOSI (1936-2021)

Um de meus professores do que hoje se chama “ensino médio” incluiu na nossa lista de livros para o segundo ano a História Concisa da Literatura Brasileira, que Alfredo Bosi — morto de Covid na última quarta, 7, aos 84 anos — escrevera ainda muito jovem, aos 34 anos. O livro, que acabou não sendo usado na nossa classe, foi para mim uma revelação de quão rico podia ser o mundo da literatura brasileira, que eu então apenas tateava. E era só o começo da carreira de Bosi, homem tão discreto quanto erudito, grande crítico literário e, segundo o testemunho de inúmeros alunos, excepcional professor. Descanse em paz.

Lili Martins/FolhapressLili Martins/FolhapressO crítico literário e professor da USP Alfredo Bosi, que morreu na última quarta

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