Carlos Fernandodos santos lima

A crise do aparelhamento

02.04.21

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal confirmou nesta semana a punição imposta ao procurador da República Deltan Dallagnol pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por ter exercido sua cidadania e defendido a votação aberta no Senado Federal durante a disputa entre Renan Calheiros e Davi Alcolumbre pela presidência da casa, em 2019. Apesar da necessidade de um Ministério Público independente, nas palavras do ex-ministro Celso de Mello, que havia anteriormente suspendido a ação disciplinar contra Deltan, os ministros sempre hostis Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, acompanhados por Kassio Marques, mantiveram a penalidade contra o mais valoroso membro do Ministério Público que conheço.

No mesmo dia, o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa demitido por Jair Bolsonaro, afirmou ao deixar o cargo que as Forças Armadas são uma instituição de estado, que não servem a governos. Esta afirmação, óbvia em uma República, transformou-se em alerta para a tentativa de Bolsonaro fazer uso do Exército como força política de sustentação de seu governo. A saída de Azevedo e Silva, seguida da demissão dos ministros das três Forças, ganhou contornos de traição destes nas hostes bolsonaristas, da mesma forma como ocorreu com a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça em abril de 2020, em virtude do aparelhamento da Polícia Federal. A única diferença nos dois casos é que Moro tomou a decisão de expor a gravidade da situação que enfrentava como ministro, coisa que a disciplina militar impediu aos chefes da Defesa e das três Armas, pelo menos de maneira explícita.

O que esses três episódios, como também como a nomeação de Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, têm em comum?  Indicam a perda da institucionalidade do estado brasileiro e o aparelhamento das suas instituições. É verdade que a Nova República vinha sendo cada vez mais aparelhada por interesses políticos mesquinhos, por desejos inconfessáveis de enriquecimento à custa do erário e por vinganças pessoais, cujo método é a colocação de arrivistas, pessoas pequenas e subordinadas aos interesses de seus patrões em cargos de importância nos mais diversos órgãos e instituições, de modo a dominar o sistema, distribuir benesses e impedir a ação dos órgãos de controle. Assim foi, por exemplo, com o próprio governo do incensado Fernando Henrique Cardoso, que escolheu o mais nefasto ministro do STF de todos os tempos, Gilmar Mendes, bem como manteve Geraldo Brindeiro por oito anos na PGR, onde este mereceu a alcunha de “engavetador-geral da República”. Também o próprio PT reconheceu que um dos erros de seu governo foi o de não ter aumentado os controles sobre as instituições, especialmente, ora vejam, as Forças Armadas e o Ministério Público.

A perda da institucionalidade não começou, portanto, com Jair Bolsonaro, apesar de ele não ter qualquer freio moral em elevar aquilo que era subentendido, oculto sob um verniz da “política como ela é”, em uma desabrida busca pelo poder a qualquer preço, mesmo que à custa da democracia (já enfraquecida) e do estado de direito (que se revela frágil). O “acordão nacional” proposto por Rodrigo Maia e Dias Toffoli, o aparelhamento do Conselho Nacional do Ministério Público por Renan Calheiros, a destruição dos mecanismos de controle pelo Congresso Nacional, a mordaça imposta pela lei de abuso de autoridade são exemplos de como toda a cal de legalidade e legitimidade da Nova República foi facilmente lavada quando a Operação Lava Jato revelou a podridão do sepulcro que chamávamos de “política”. Bolsonaro foi apenas um hipócrita que se aproveitou disso para se promover, quando era apenas uma criatura monstruosa nela criado.

Agora, em um agravamento desse processo de degeneração democrática, o que Bolsonaro quer é a sujeição do estado à sua vontade, um novo rei que mantém no governo, como nas histórias das monarquias europeias, apenas aqueles que aceitam limpar seu traseiro. Enquanto que em outros governos o domínio da elite política se dava por mecanismos ocultos de poder, o que Bolsonaro pretende agora é a submissão de todos à sua vontade imperial sob risco, inclusive, da integridade pessoal. Não por outro motivo, vem empenhando esforços para submeter todos os poderes armados, especialmente o Exército e as polícias, ao seu controle com o absolutamente inconstitucional projeto de lei de mobilização nacional. Estamos na iminência de uma crise gestada nos últimos 20 anos e que pode engolir a todos, democratas ou não, em uma aventura que destruirá a experiência democrática e republicana da Constituição Federal de 1988. O que Bolsonaro quer é uma versão do bolivarianismo chavista, agora com o seu nome.

Estamos todos os brasileiros sob risco, portanto. De um lado temos um presidente completamente despreparado, com sintomas de paranoia e incapaz de qualquer grandeza pessoal, mas suportado por uma legião de fanáticos e buscando apoio armado às suas pretensões. De outro, um sistema que insiste em trazer de volta as barganhas de poder e dinheiro em detrimento da população, um sistema de Aécios, Lulas e Calheiros revelado pela Lava Jato, cuja podridão enoja qualquer cidadão de bem. A grande questão que fica aos brasileiros é se realmente temos que nos contentar com essas duas opções, essa disputa do mal contra o mal que não trará nada de bom para o país.

Nem mesmo a imprensa, outrora poderosa, mas hoje enfraquecida pela ascensão das redes sociais, escapa desse maniqueísmo, exaltando personagens com um passado de envolvimento em corrupção como  alternativa a Jair Bolsonaro. Alguns, especialmente aqueles que desejavam que a Lava Jato tivesse parado de investigar e atingido apenas o Partido dos Trabalhadores, deixando Michael Temer governar – apesar de a operação nada ter a ver com o escândalo da JBS –, agora querem a volta da política anterior a Lula, com o poder dividido entre o PSDB, MDB e DEM, como se isso fosse um exemplo de um período idílico de nossa República, o que não é verdade. Os seguidos escândalos como as privatizações e a compra de votos para permitir a reeleição de FHC mostram que a podridão já se espalhava no cerne das instituições, tendo Lula somente sistematizado a corrupção.

Temos que voltar ao básico da Constituição Federal de 1988 e reconstruir as instituições longe dos casuísmos convenientes. Devemos ter instituições sólidas, autônomas e independentes, construídas sob os princípios democráticos, republicanos e federativos, em que um poder sirva de fiscal do outro. Mas, de maneira urgente, precisamos resistir aos desejos golpistas de Jair Bolsonaro sem cair na armadilha de voltarmos a uma política corrupta e venal do passado. Por isso é preciso construir um movimento apartidário, democrático e republicano, com um programa de centro capaz de enfrentar os grandes problemas nacionais e que ofereça alternativa ao desgoverno sem cair na tentação do poder pelo poder. O que não é possível é continuar na polarização que vemos hoje. A vitória de qualquer um dos extremos, seja qual for, não fará um Brasil melhor, mas apenas prolongará nossa agonia.

Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.

500
Mais notícias
Assine agora
TOPO