RuyGoiaba

Saudades do ‘inimigo suez’

26.03.21

É tanta desgraça acontecendo no mundo e principalmente no Brasil que a gente chega a ficar feliz quando acontece um problema sério, mas de potencial letal muitíssimo menor — e, sobretudo, perfeito para fazer piada. Estou falando, é claro, da manobra mais malfeita da história, graças à qual o navio Ever Given simplesmente trancou a passagem pelo canal de Suez. Eu mesmo sou ruim de baliza, mas o máximo que consegui foram umas raspadas na lateral do carro. Juro que nunca fechei a rota naval entre o Mediterrâneo e o mar Vermelho, se bem que esse é o tipo de barbeiragem que eu faria se fosse capitão de navio.

Na data em que concluí este texto (quinta-feira, 25), o bloqueio do canal pelo Ever Given completava quatro dias, sem perspectivas de se resolver, e o engarrafamento marítimo — com cerca de 200 navios — era considerado o maior da história. Nas redes sociais, as melhores piadas sobre o assunto já foram feitas: um amigo disse que o Waze estava sugerindo dar a volta pelo cabo da Boa Esperança, um site de humor escreveu que o congestionamento em Suez já se refletia no trânsito da marginal Tietê e corriam pelos grupos do WhatsApp frases do tipo “chama o Vasco da Gama para resolver!” (o navegador, óbvio: mais fácil ressuscitar o “heroico português” que o time de futebol com seu nome).

Como sou velho, a história de Suez me fez lembrar de um dos meus absurdos favoritos publicados em jornal: o caso do “inimigo suez”. Em outubro de 2001, em visita a Tabatinga, na tríplice fronteira com Colômbia e Peru, o então presidente Fernando Henrique Cardoso deu uma entrevista dizendo que, se preciso, mandaria as Forças Armadas abaterem aviões que ameaçassem o Brasil com atos ilícitos, como terrorismo — na época, o 11 de Setembro tinha acabado de acontecer nos EUA. A Folha reproduziu assim as declarações de FHC: “Precisamos fazer um esforço grande para controlar o terrorismo, que é um inimigo suez”.

A isso o jornal acrescentou o chamado parêntese didático: o presidente brasileiro, notório erudito, referia-se “aos combatentes egípcios que lutaram contra os israelenses na região de Suez, em 1973, e atacavam seus oponentes por meio de túneis subterrâneos abandonados, de surpresa”. Mas não era nada disso: com seu sotaque peculiar, FHC disse simplesmente que o terrorismo era um inimigo SOEZ (segundo o Houaiss, “barato, sem nenhum valor; desprezível, reles, vulgar”; por extensão de sentido, “que não tem bom caráter, baixo, vil, ordinário”). A aula de história foi bacana, mas em momento algum os tais túneis dos combatentes egípcios devem ter passado pela cabeça do grão-tucano.

Já dediquei uma coluna inteira a grandes batatadas jornalísticas, mas Deus me livre de cuspir para cima nesse quesito: errei, erro e errarei, e nada impede que um dia eu publique uma besteira mais ou menos equivalente a encalhar um navio no canal de Suez. Na verdade, quando inspirados, esses erros abrem as portas para outros mundos possíveis, geralmente mais interessantes que o nosso. Nesta semana mesmo, saiu uma reportagem dizendo que Marcelo Queiroga, o novo ministro da Saúde, seria recebido por Adib Jatene ao visitar o InCor, o que estaria muito bem se Jatene não tivesse morrido em 2014; outro site informou que “seis ex-presidentes vivos (do Brasil) foram imunizados” contra a Covid, o que me fez imaginar quão difícil deve ser vacinar ex-presidentes mortos.

Os erros foram corrigidos rapidamente na internet. Mas me digam se não seria muito mais legal Queiroga ser recebido no InCor pelo fantasma de Adib Jatene — que aliás poderia assombrá-lo toda vez que o ministro cedesse a idiotas cloroquiners, puxar o pé dele à noite etc. Ou Getúlio Vargas (com aquele pijaminha listrado hoje exposto no Palácio do Catete), Jânio Quadros (com as pernas tortas) e outros mortos ilustres esperando na fila por sua dose de vacina. Sem dúvida seria um universo paralelo bem melhor que nosso mundo real repleto de fake news, em que Jair Bolsonaro defendeu a vacinação desde o comecinho da pandemia e Lula é um inocente injustiçado.

Dá até saudade do inimigo suez e outros erros não letais. Como diria o igualmente saudoso Lilico do Bumbo: tempo bom, não volta mais.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Nesta semana, não houve competidor possível: o troféu tem de ir para Ivo Cassol, ex-governador de Rondônia, e o vídeo em que ele “testa” a fumaça de solda elétrica como tratamento contra o coronavírus. Reproduzo aqui as aspas do gênio ao G1: “Não sou cientista (jura? Não tem quem diga!), mas eu quero deixar claro que a solda, no meu ponto de vista, aquela claridade dela pode, de repente, transmitir vitamina D (ao corpo) ou a claridade em si, e ela de repente mata o coronavírus. Portanto, vai depender dos pesquisadores daí pra frente”.

Faltou só Cassol testar a solda em cima do voluntário do vídeo, o que faria efeito ainda melhor, matando a cobaia antes que ela morra de Covid. Solução um tantinho radical, admito, mas inegavelmente tiro e queda — ou alguém acredita que a decapitação não resolve em definitivo o problema da caspa? É essa má vontade de vocês que ESTRAVANCA o POGREÇO da ciência.

ReproduçãoReproduçãoIvo Cassol e a ‘solda anti-Covid’: audaciosamente indo aonde a ciência jamais esteve

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