MarioSabino

Por que é preciso sobrar brasileiro

26.03.21

Hoje, ao acordar, abri a janela em busca de São Miguel Arcanjo limpando uma espada ensanguentada e recolocando-a na bainha. Foi essa a visão que o papa Gregório teve no ano de 590, durante a procissão na qual pedia o fim da peste em Roma. Ela o levou a crer que as suas preces haviam sido atendidas, transformou a tumba do imperador Adriano em igreja e quase 1.500 anos depois os romanos podem ignorar a linda escultura do arcanjo no topo do Castel Sant’Angelo.

Como não sou papa nem santo, como Gregório, não havia arcanjo nenhum na paisagem emoldurada pela minha janela. Paisagem é uma licença poética em se tratando de São Paulo. A coisa mais etérea que avisto são guindastes em cima de um prédio de luxo, hotel incluído, que está sendo construído aqui perto. A torre mais alta terá 44 andares, disse um operário indagado por mim. Recebi várias mensagens de corretores me oferecendo apartamento lá. Não sei porque o meu nome está na lista deles, assim como não faço ideia por que fui parar na mailing list de um vendedor de apartamentos de cair o queixo em Miami. Ao verificar minhas mensagens de email, deparei com um sujeito tentando me empurrar uma unidade no Waldorf Astoria Residences, em pré-lançamento na cidade em que rico brasileiro vai tomar vacina first class contra Covid. Terá 100 andares. Cabe um monte de ricos lá dentro, servidos igualmente por um monte de pobres, tal é a quantidade de mimos a que se tem direito. O capitalismo cria riqueza, empregos e, inevitavelmente, ressentimento. Há algum ressentimento nestas linhas, mas ele é passageiro. A minha incompetência para ganhar dinheiro se combina perfeitamente com a profissão que escolhi (no caso de ser exercida com honestidade) e a falta atávica de maiores ambições materiais. Se eu chegar aos 60 anos, talvez compre um carro de verdade, para ter um objetivo realmente burguês nesta vida.

Eu derivei de São Miguel Arcanjo, mas volto a ele (já antevejo os leitores que me malham por causa da minha propensão a digressões pessoais. Ainda bem que eles nunca leram Laurence Sterne). A minha crença supersticiosa é que São Miguel Arcanjo embainhará a espada limpa de sangue quando o prédio de luxo, hotel incluído, for terminado. O problema é que a construção está rápida demais. O arcanjo já vai ter guardado a espada e os desmandos de Jair Bolsonaro permanecerão matando.

Como a desgraça brasileira requer sempre horizontes mais largos, ainda temos Lula de volta, graças ao serviço que lhe prestou o germanista Gilmar Mendes, sempre admirável pelo seu equilíbrio, elegância e apreço pelo Piauí. Para não falar do seu atributo natural, a imparcialidade como juiz. Sujeito formidável. No julgamento sobre a suspeição de Sergio Moro, convenceu-me de que o grande problema nacional é o Ministério Público, um verdadeiro soviete que precisa ser destruído. Elogiei-o por isso em O Antagonista. A imparcialidade do germanista Gilmar Mendes, sempre admirável pelo seu equilíbrio, elegância e apreço pelo Piauí, resultou em Lula elegível em 2022, e elegível como mártir numa categoria que, salvo engano, não existe na compilação da Legenda Aurea — Vidas de Santos, de Jacopo de Varazze. A categoria é a de ex-condenado. O jornalista Paolo Manzo, correspondente da revista italiana Panorama, gostou do que eu disse não sei mais onde e abriu a sua reportagem sobre o fim da Lava Jato me citando: “Até hoje existiam apenas três categorias judiciárias, os condenados, os inocentes e os que haviam cumprido pena. No Brasil, porém, inventou-se a do ex-condenado”. Mario Sabino Varazze, modestamente.

Lula chegará a 2022 como mártir do malvadão Sergio Moro, do Ministério Público soviético e das elites. Eu disse elites, mas é preciso ir devagar com o andor, Varazze. Como de hábito, Lula dará uma maneirada para não assustar muito o mercado e vender-se novamente como o presidente que fez rico ganhar rios de dinheiro, deixando de lado que foi o presidente que fez pobre afogar-se em dívidas até o pescoço, com crescimento baseado apenas em crédito. Ele já diz por aí que quer repetir a dose. Dois erros fazem um acerto lulista porque funciona eleitoralmente, apesar de escangalhar o Brasil economicamente. Quem se importa com o futuro no país do eterno presente? Milhões de brasileiros não veem a hora de voltar a fazer várias prestações de 60 meses, ter uma parcela do salário retida na fonte pelo empréstimo consignado e achar que foram promovidos à nova classe C. O importante é o brilho nos olhos dos filhos com a chegada em casa da TV de 185 mil polegadas. Quanto ao mercado, ele é como papel: acaba aceitando tudo até certo ponto. O Brasil nunca ultrapassará o certo ponto.

O povo é esse coitado útil, a imprensa trabalha freneticamente para jogar todas as trapaças e crimes de Lula no esquecimento, o germanista Gilmar Mendes, sempre admirável por seu equilíbrio, elegância e apreço pelo Piauí, continua a exercer a sua imparcialidade, o Legislativo é um covil de boas intenções: diante desse quadro, o que fazer? Como eu disse, se conseguir chegar até os 60 anos, talvez compre um carro de verdade. Posso aproveitar a onda Lula e adquirir o possante, senão em 60, em 36 prestações. É uma possibilidade cada vez mais nítida, ainda que eu tenha de vender o carro por causa da manutenção cara. Até a compra do possante em 36 prestações, posso me contentar em relembrar o tempo em que parecia que tínhamos chance. Há quase cinco anos, escrevi um artigo banal sobre ela. Lá vou eu outra vez:

“Hoje, dia 26 de agosto de 2016, uma farsa começou a ser formalmente desmontada. A farsa chamada Luiz Inácio Lula da Silva. Ele foi indiciado pela Polícia Federal por corrupção passiva, falsidade ideológica e lavagem de capitais, no âmbito da Lava Jato. Todos esses crimes estão conectados ao recebimento de vantagens indevidas pela OAS, uma das empreiteiras do petrolão, no caso do tríplex do Guarujá. Lula também deverá ser indiciado em relação ao sítio de Atibaia.

Indiciamento não é condenação, mas as provas contra Lula são tão robustas que será muito difícil para ele escapar de uma sentença dura. Esperava-se o indiciamento para logo depois do impeachment de Dilma Rousseff. A situação se precipitou por causa do cancelamento da delação premiada de Léo Pinheiro, por Rodrigo Janot, episódio ainda mal explicado. O que se sabe até agora é que a PF não gostou de ter sido deixada de lado nas negociações da PGR com o ex-presidente da OAS.

Não importam as circunstâncias do indiciamento, o Brasil está se livrando de Lula. Com ele, atingimos o ápice da demagogia e da corrupção nesta terra pródiga em demagogos e corruptos. 

Lula surgiu no regime militar, quando se apresentou como líder sindicalista tolerável aos generais. Na redemocratização, a esquerda o transformou em ícone revolucionário e chefe de partido. No entanto, o discurso radical que lhe fora oportuno na construção do PT revelou-se um desastre eleitoral nas campanhas presidenciais – e Lula, então, engravatou o pescoço e as palavras, para conquistar banqueiros, empresários e parte da classe média. Chegou ao Planalto por meio do que parecia ser um consenso inédito entre interesses de trabalhadores e patrões.

No poder, Lula levou às últimas consequências o assistencialismo mais rasteiro e uma política econômica que, baseada apenas em crédito farto, graças à bonança mundial, resultaria no desastre completo sob Dilma Rousseff, a criatura que escolheu para sucedê-la e autora da maior fraude fiscal já cometida no país. Como resultado, os ganhos sociais relevantes proporcionados pelo Plano Real foram parar na fila do desemprego.

No poder, Lula instituiu, para além da imaginação, a prática de comprar apoio parlamentar e financiar campanhas com dinheiro sujo. Tanto no mensalão como no petrolão, o seu partido e aliados desviaram bilhões de reais dos cofres públicos para realizar tais pagamentos.

No poder, Lula e boa parte dos seus companheiros enriqueceram por meio de contratos fraudulentos entre empreiteiras e estatais como a Petrobras, arrasada durante os anos dos governos do PT.

No poder, Lula tentou calar a imprensa independente, comprou o veneno de blogueiros e jornalistas decadentes, perseguiu profissionais que desvelavam os porões imundos do lulopetismo e cortou propaganda de veículos sérios, como a revista Veja. Com isso, minou um dos pilares da democracia que é a liberdade de imprensa.

É essa farsa que começou a ser formalmente desmontada pela PF num radioso 26 de agosto de 2016.”

Bons tempos.

Amanhã deverá subir mais um andar do prédio de luxo aqui perto de casa. Apresse-se, Bolsonaro Arcanjo. É preciso sobrar brasileiro para votar em Lula.

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