Moro transformado em vilão
Quando a Lava Jato deflagrou suas primeiras ações ostensivas, em 2014, figuras como o doleiro Alberto Youssef e o então diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa eram completamente desconhecidas da população, mas o esquema de corrupção ao qual eles serviam sempre habitou o senso comum brasileiro como um flagelo concreto e irreparável. À exceção do mensalão, inúmeras investigações envolvendo crimes praticados por políticos e grandes empresários ficaram pelo caminho.
Desmantelar um complexo e sistêmico modelo de desvio e lavagem de dinheiro mediante o aparelhamento da máquina pública e o pagamento de vultosas propinas era inimaginável. O ciclo de impunidade só foi rompido há sete anos, quando o então juiz federal Sergio Moro começou a aplicar o rigor da lei aos criminosos levados à 13ª Vara Federal de Curitiba pelos procuradores do Paraná que investigavam os desmandos na maior estatal brasileira. A força-tarefa montada para apurar o escândalo e o amplo apoio popular levaram a Lava Jato a atingir o extraordinário resultado de 219 condenações e mais de 5 bilhões de reais recuperados. Mas à medida que foi se desdobrando em novas frentes, a operação também foi somando novos e poderosos inimigos. Nos últimos anos, não foram poucos os que tentaram destruir a Lava Jato, mas ninguém teve a habilidade – e o poder – para cumprir essa missão como o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.
Nesta edição especial, Crusoé traz uma série de reportagens mostrando como a estratégia utilizada por Gilmar e outros detratores da Lava Lato para asfixiar a maior operação de combate à corrupção da história alcançou seu ápice, abrindo um flanco de dimensões oceânicas para anular dezenas de condenações, com a declaração, na última terça-feira, 23, de que Sergio Moro foi parcial ao julgar e condenar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do tríplex do Guarujá.
A própria estratégia adotada por Gilmar Mendes no julgamento – fazendo o uso retórico, informal, das mensagens interceptadas pelos hackers para insinuar que houve um conluio do ex-juiz com a extinta força-tarefa liderada por Deltan Dallagnol – acendeu o sinal de alerta dentro do próprio Supremo quanto ao impacto da decisão nos demais processos da Lava Jato. Relator da operação na corte, e desde sempre contrário ao uso das provas ilícitas sem que elas tivessem sido oficialmente validadas, o ministro Edson Fachin afirmou que o material tem “potencial para anular integralmente a Operação Lava Jato”.
Mesmo depois de Fachin anular de forma surpreendente no início do mês todas as decisões da 13ª Vara Federal de Curitiba envolvendo Lula, inclusive as condenações no caso do tríplex do Guarujá e do sítio de Atibaia, por considerar que não havia conexão com o escândalo da Petrobras, e com isso extinguir o pedido de suspeição de Moro, Gilmar desengavetou o habeas corpus de Lula, que ele segurava havia mais de dois anos em seu gabinete, para levá-lo a votação na Segunda Turma no dia 9 de março. Na ocasião, o placar do julgamento estava 2 a 0 contra o pedido do petista. Fachin e Cármen Lúcia haviam votado, ainda em dezembro de 2018.
O voto de Kassio, alinhado com os anseios bolsonaristas de evitar que Lula se tornasse elegível em 2022, provocou a ira de Gilmar. Aos berros, o ministro pediu a palavra e, como se estivesse proferindo um voto de protesto, ressaltou pontos do seu voto que não tinham relação com as mensagens roubadas, classificou como “cínico” o argumento de Kassio e o chamou de “covarde“. Visivelmente alterado diante de uma possível derrota, Gilmar centrou esforços para convencer a ministra Cármen Lúcia a mudar de voto. Não se sabe ao certo se foi ali, em tempo real, mas a pressão funcionou. Sem que a defesa de Lula tenha juntado fato novo no recurso desde 2018, e dizendo desconsiderar completamente as mensagens roubadas da Lava Jato no seu julgamento, a ministra mudou de convicção e votou pela parcialidade de Moro. Decretou, assim, a vitória de Lula – e de Gilmar.
A declaração de suspeição de Moro anula, como já dito, todas as provas produzidas desde o início da investigação que resultou na condenação do ex-presidente por corrupção e lavagem de dinheiro em três instâncias — condenação que o tornou inelegível em 2018 e o levou à prisão por 580 dias. Com a decisão, nem o juiz federal que irá receber os processos de Lula enviados por Fachin a Brasília poderá aproveitar o trabalho realizado pela força-tarefa no caso do tríplex, medida que deve ser estendida aos demais casos do petista que em algum momento passaram pelas mãos de Moro, como a ação do sítio de Atibaia, na qual o petista também já havia sido condenado em duas instâncias antes da anulação de Fachin, e os processos envolvendo repasses da Odebrecht ao Instituto Lula.
A maior preocupação agora é com o efeito cascata que o veredicto pode impingir nos demais processos da Lava Jato que tramitaram na 13ª Vara Federal de Curitiba enquanto Sergio Moro foi o juiz titular da operação, entre 2014 e 2018, quando mais de 100 réus foram condenados. Essa suspeição de Moro, que pode contaminar toda a Lava Jato, tem sido alimentada pelo próprio ministro Gilmar Mendes, de forma até jocosa, e, claro, com base nas mensagens roubadas. “Algum dos senhores compraria um carro do Moro? Algum dos senhores, hoje, seria capaz de comprar um carro do Dallagnol? São pessoas de confiança? São pessoas que nós temos como probas? Alguém o contrataria como advogado, nestas circunstâncias, tendo agido desta forma?”, ironizou Gilmar.
Moro se manifestou sobre a decisão só no dia seguinte, por meio de nota. Afirmou que a Lava Jato foi “um marco no combate à corrupção no Brasil” e que “todos os acusados foram tratados nos processos e julgamentos com o devido respeito, com imparcialidade e sem qualquer animosidade” de sua parte, como juiz do caso. “Tenho absoluta tranquilidade em relação aos acertos das minhas decisões, todas fundamentadas, nos processos judiciais, inclusive quanto àqueles que tinha como acusado o ex-presidente (Lula)”, diz o texto. Em conversas privadas, o ex-juiz foi menos diplomático e usou palavras duras para se queixar da postura de alguns ministros no julgamento. Publicamente, Moro tem evitado o confronto direto até para responder aos ataques mais ferozes de Gilmar, por exemplo. Em sua coluna publicada nesta edição de Crusoé, porém, ele dá a medida do diagnóstico que faz do país a partir das últimas decisões e de seu impacto sobre a Lava Jato. “O Brasil parece, às vezes, uma nau sem rumo ou, pior, em direção ao desastre”, escreve (leia aqui).
Como Crusoé mostrou na semana passada, o golpe arquitetado por Gilmar contra a Lava Jato não se resume aos feitos da 13ª Vara Federal de Curitiba. Durante o julgamento de suspeição de Moro, o ministro já demarcou como próximo alvo a 7ª Vara Federal do Rio de Janeiro, comandada pelo juiz Marcelo Bretas e onde correm os processos da Lava Jato fluminense, braço da operação que mais avançou sobre os esquemas do Poder Judiciário e prendeu políticos e empresários ligados a Gilmar. Ainda não dá para saber como o ministro pretende enquadrar Bretas e a força-tarefa fluminense, como fez com os “tiranetes” de Curitiba que, nas palavras dele, “botavam medo no Brasil“. A bem da verdade, botavam medo apenas em quem deve.
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