O próximo alvo de Gilmar
Mesmo com os sucessivos acessos verborrágicos de Gilmar Mendes, pairava no meio jurídico uma dúvida sobre a dimensão do golpe que se armava contra a Lava Jato dentro do Supremo Tribunal Federal. Estaria a campanha de destruição da operação, calçada nas mensagens roubadas dos procuradores do Paraná, limitada aos feitos da força-tarefa de Curitiba? Ou o movimento capitaneado pelo ministro seria expandido para as sucursais da operação, criadas para investigar os desdobramentos dos esquemas de corrupção em outros estados? Na última semana, Gilmar tratou de enterrar qualquer dúvida que pudesse haver sobre suas intenções. Durante o julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro em um dos processos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na Segunda Turma, ele pontuou, mais de uma vez, qual é seu próximo alvo: a “tal 7ª Vara do Rio de Janeiro”. É na vara comandada pelo juiz Marcelo Bretas que correm os processos da Lava Jato fluminense, reconhecidamente o braço da operação que mais avançou sobre o Poder Judiciário, denunciando advogados renomados e parentes de magistrados, além de ter prendido empresários e políticos ligados ao próprio Gilmar Mendes.
Com um método nada ortodoxo que já virou sua marca registrada, o ministro que lidera a ala anti-Lava Jato do Supremo lançou suspeitas sérias sobre a frente da operação no Rio. Gilmar afirmou que existe um “escândalo que ainda não veio à tona” na 7ª Vara, aquela comandada por Bretas, e jogou no ar o nome de um jovem advogado investigado por “vender” uma suposta “aproximação” com os procuradores e o juiz da Lava Jato fluminense, o que poderia configurar crime de tráfico de influência ou exploração de prestígio. “Não sei se já ouviram falar, senhores ministros, de um personagem que gravita por aí e que fez uma reclamação no STJ chamado Nythalmar. Um advogado que liderava as delações até um determinado momento e depois se tornou uma figura espúria”, disse o ministro aos colegas de turma. A mensagem que Gilmar quis passar foi clara: os tais “crimes” que ele diz terem sido praticados na 13ª Vara de Curitiba com Moro também teriam ocorrido na 7ª Vara do Rio com Bretas, que rebateu o ataque quase que em tempo real, pelas redes sociais, negando “qualquer suposta irregularidade”.
O empreiteiro que enriqueceu abocanhando obras na era de ouro de Sergio Cabral e confessou ter pago propina ao ex-governador virou o principal cartão de visita de Nythalmar, que passou a aliciar clientes de outros advogados dentro dos presídios e nos corredores do tribunal. Logo ele deixaria o anonimato e o escritório no subúrbio para ganhar seu lugar entre as estrelas.
Na lista de alvos abordados estariam o próprio Cabral e o empresário Eike Batista, a quem o advogado teria “vendido facilidades” para fechar acordos na 7ª Vara. Assim que a representação feita contra Nythalmar na OAB ganhou o noticiário, ainda em 2019, o coordenador do braço fluminense da Lava Jato, procurador Eduardo El-Hage, pediu uma investigação ao próprio Ministério Público Federal, por causa da suposta “aproximação” com o juiz e com a força-tarefa que o advogado teria usado para ganhar novos contratos. O inquérito ficou praticamente parado até setembro de 2020, quando a Lava Jato compartilhou com o procurador encarregado do caso duas possíveis provas contra Nythalmar: uma anotação na agenda do almirante Othon Pinheiro da Silva, na qual o ex-presidente da Eletronuclear descreve Nythalmar como “advogado milagreiro do juiz Marcelo Bretas”, e uma mensagem de WhatsApp enviada pelo advogado a Sergio Côrtes, em agosto de 2018, na qual ele alerta que o ex-secretário de Cabral estava “perdendo uma semana preciosa” e que precisava receber o “compromisso de solução do seu caso”. Côrtes não trocou de advogado e foi preso cinco dias depois por ordem de Bretas.
As especulações envolvendo o caso Nythalmar ganharam ainda mais fôlego entre os que querem usá-lo para fustigar a Lava Jato depois que o advogado decidiu, em uma ousada estratégia de defesa, fazer uma reclamação ao Superior Tribunal de Justiça, argumentando que como a investigação sobre ele trata de uma suposta “venda de facilidades” na 7ª Vara, o juiz Marcelo Bretas e os procuradores também deveriam ser considerados suspeitos e investigados. Como dois integrantes da força-tarefa são procuradores regionais da República, a competência para investigá-los seria então do STJ, e não da primeira instância da Justiça Federal do Rio. A reclamação foi propositadamente protocolada por Nythalmar no dia 21 de dezembro, para que fosse apreciada durante o recesso do Judiciário pelo presidente da corte, Humberto Martins, cujo filho Eduardo Martins foi denunciado pelos próprios procuradores e teve os bens bloqueados por Bretas sob a acusação de receber honorários milionários da Fecomércio do Rio, para influenciar nos julgamentos de interesse da entidade na corte onde atua o pai. Menos de oito horas depois, Humberto Martins concedeu a liminar a Nythalmar e puxou toda a investigação para o STJ, inclusive a parte relativa a Bretas e aos demais procuradores. A relatora é a ministra Laurita Vaz.
Crusoé apurou que o advogado já recebeu ao menos uma oferta de dinheiro de uma pessoa interessada em destruir a Lava Jato fluminense, para delatar a força-tarefa ou o próprio Marcelo Bretas. Em paralelo, boatos envolvendo um suposto acordo de delação premiada de Nythalmar têm sido cada vez mais frequentes, alimentados por narrativas como as que foram alinhavadas por Gilmar Mendes na semana passada. Procurado por Crusoé, Nythalmar negou estar negociando uma delação e encaminhou documentos para rebater as acusações feitas contra ele por outros advogados, como uma carta escrita de próprio punho por Sergio Cabral na cadeia, na qual o ex-governador afirma que Nythalmar não tentou convencê-lo a trocar de advogado, e um ofício de um presídio do Rio informando que ele nunca esteve no local onde uma advogada disse que ele aliciou seu cliente.
É difícil prever os próximos capítulos da trama. Mas é fato que o caso que nasceu de uma disputa entre advogados virou um prato cheio para Gilmar e Humberto Martins fustigarem – e procurarem destruir – a Lava Jato do Rio. Agora, com o auxílio das mensagens hackeadas dos procuradores do Paraná, que foram compartilhadas com o presidente do STJ naquele inquérito que ele abriu no mês passado para apurar a suposta tentativa da força-tarefa de “intimidar” os ministros da corte com investigações clandestinas. Se Humberto Martins tem interesse pessoal no caso em razão do envolvimento de seu filho na operação, Gilmar não fica atrás.
Nos dois casos – o de Jacob Barata e o de Caio Rocha –, o MPF pediu a suspeição do ministro, mas os pleitos nunca avançaram na corte. Já no Rio, onde o combate à corrupção avançou, o episódio Nythalmar está suscitando pedidos de suspeição de Bretas. A conhecida eloquência de Gilmar tem funcionado como pano de fundo para a estratégia. Quem conhece o ministro sabe que, uma vez definido o alvo, ele não vai se limitar ao gogó. A nova guerra de Gilmar está só começando.
Os comentários não representam a opinião do site. A responsabilidade é do autor da mensagem. Em respeito a todos os leitores, não são publicados comentários que contenham palavras ou conteúdos ofensivos.