AlexandreSoares Silva

O melhor livro soviético do Brasil

19.03.21

Torto Arado? Que espécie de nome é Torto Arado?

Se é um trocadilho com “torturado”, é ruim; se não é, é pior, pela falta de previsão de que vai parecer que é.

Posso fazer uma crítica de um livro só pelo título? Não tendo lido mais nada? Sei que não, mas vem cá – no fundo, por que não? Afinal ninguém exige que um crítico de vinho beba a garrafa inteira antes de falar dela.

Mas não vou fazer uma crítica do livro, propriamente. É mais uma análise do hype todo em torno do livro.

Não, não é uma análise do hype todo em torno do livro. É mais uma análise do meu incômodo com o hype todo em torno do livro.

Não, não é uma análise do meu incômodo com o hype todo em torno do livro. É inveja mesmo.

Pronto, é isso. Uma inveja bruta, brutíssima, porque afinal lancei um livro mais ou menos ao mesmo tempo que ele e, obviamente, não cheguei nem perto de receber a atenção que o livro dele recebeu. O meu foi um pequeno sucesso de estima, mais pequeno que sucesso, é verdade, um sucessito de estima, ao passo que o Itamar Vieira Junior não só ganhou o Jabuti, o Oceanos e o Leya, como ficou nas listas dos bestsellers, imagino (não quis ver, tenho medo de ver).
“O maior escritor brasileiro”, diz alguém no UOL. Livro de cabeceira do Lula, se podemos confiar na sinceridade com que presidentes colocam livros na cabeceira (não podemos, mas minha má vontade com o livro é tamanha que até acredito que o Lula goste dele).

O meu não só não é o livro de cabeceira do Lula, como não deve ser nem o livro de cabeceira do Eymael.

Um impulso de dar um golpe baixo, um argumento de autoridade. Nabokov sendo entrevistado pela tevê francesa em 1975:
Entrevistador: Me contaram que você não gosta de Faulkner. Acho difícil de acreditar.
Nabokov: Não apoio literatura regionalista. Folclore artificial.

Tome essa, Itamar! Você claramente não passa de um mero Faulkner!
Mas honestamente, quantas vezes o Brasil vai ter que reescrever A Bagaceira, Dona Guidinha do Poço etc? A cada geração o mesmo menino que se entediou na escola lendo esses livros cresce e escreve um igual.

Bom, passaram uns dias. Comecei a ler o livro. Para ser sincero não estou satisfeito, porque não acho que seja bom, mas ao mesmo tempo não é tão ruim que me dê o prazer de ficar zombando dele.

Mas me digam se isso não é um pouco brega:

“Eu pari esta terra. Deixa ver se a senhora entendeu: esta terra mora em mim”, bateu com força em seu peito, “brotou em mim e enraizou.” “Aqui”, bateu novamente no peito, “é a morada da terra. Mora aqui em meu peito porque dela se fez minha vida, com meu povo todinho. No meu peito mora Água Negra, não no documento da fazenda da senhora e de seu marido. Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim.”

Ou isto:

“Quando ele veio para cima para tentar me retirar dali à força, meu coração estava aos pulos, sentia meu interior frio como a brisa da madrugada, mas permaneci firme como meus antepassados.”

E tem umas frases assim:

“Cada mulher sabe a força da natureza que abriga na torrente que flui da sua vida.”

Que ou é sobre menstruação, ou é a melhor passagem sobre ejaculação feminina na literatura brasileira desde o famoso “A menina derramava em torno de si um fluido de affecto e ternura”, do Tronco do Ipê de José de Alencar.

Mas, enfim, vários amigos meus ficaram encantados com o livro, e até o meu pai falou meia hora sobre ele, de modo que um ciúme e uma inveja doentios me indispuseram contra a leitura. Porque quem sou eu, o Buda?

Agora que li, encontro um elogio pra fazer: com seus campesinos nobres lutando contra a opressão, e fazendo discursos cheios de dignidade sobre o que é o certo e o errado, Torto Arado é o melhor livro de literatura soviética escrito no Brasil nos últimos três anos.

***

Por falar em causas boazinhas da moda, vocês talvez tenham visto que está para abrir uma livraria em São Paulo que só vai vender livros escritos por mulheres.

Acho um erro, e já digo o motivo.

A literatura é desde a antiguidade vista como uma luta entre o escritor e os seus antecessores. Vejam Longino, no século I A.C.: ”Belo, na verdade, e merecedor de coroa de glória é esse combate em que mesmo em ser derrotado pelas gerações anteriores não deixa de haver glória.” E, numa entrevista, Hemingway disse que lutou contra e venceu “Mr Turgueniev” e “Mr de Maupassant”, que teve dois empates com “Mr Stendhal”, e que não era louco de subir no ringue com Tolstói.

Pois bem, me parece um erro enorme que justamente nesse campo, em que não existe motivo nenhum para que as mulheres não possam entrar em uma competição mista com os homens, e às vezes ganhar, elas fiquem excluídas numa competição à parte.

É uma tolice, porque Jane Austen pode perfeitamente entrar no ringue e enfrentar Dickens, assim como Emily Brontë pode enfrentar Lord Byron. E, claro, Raquel de Queiroz pode muito bem enfrentar o Itamar Vieira Junior, com alguma vantagem até – sem que as suas fãs precisem vir arrancá-la do ringue para ir lutar só entre elas.

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