Divulgação/Planalto

O doutor obediente

Os movimentos de Marcelo Queiroga anteriores à nomeação mostram que ele operou para virar ministro da Saúde e, no pior momento da pandemia, reforçam o temor de que possa ser só mais um cumpridor de ordens do presidente
19.03.21

Cardiologistas de todo o Brasil aglomeraram-se na centenária Academia Nacional de Medicina, no centro do Rio de Janeiro, na tarde de 13 de dezembro de 2019. O pretexto para o encontro era a posse do médico paraibano Marcelo Queiroga como presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, uma das mais prestigiadas entidades do meio médico. Após os discursos protocolares, um pronunciamento inesperado surpreendeu os presentes. No telão instalado no auditório da academia, fundada na época do Império, surgiu a imagem do senador Flávio Bolsonaro. “Quero deixar meus parabéns, desejar sucesso e muita força. É uma missão difícil, mas muitas outras podem surgir pelo caminho, não é, Marcelo? Tenho certeza de que o senhor está preparado e qualificado para qualquer missão que o Brasil venha a lhe chamar na área médica”, disse Flávio. “Um forte abraço do nosso presidente Jair Bolsonaro a todos os cardiologistas”, finalizou o senador. A demonstração da influência política de Queiroga, com o pronunciamento do filho do presidente, chamou atenção – mas só dos médicos que ainda não o conheciam. Quem já acompanhava os passos do cardiologista paraibano sabia que ele tinha planos maiores.

Os posicionamentos do cardiologista à frente da entidade nos meses seguintes, a maior parte alinhada com o léxico bolsonarista, embora com uma piscadela ou outra para quem dele diverge, confirmariam as impressões que colegas já haviam colhido: Queiroga sempre se manteve firme no propósito de ganhar espaço na burocracia de Brasília e contava com o melhor padrinho possível para a sua escalada ao poder, o filho 01 do presidente. A segunda-feira, 15, dia em que Jair Bolsonaro o confirmou como o quarto ministro da Saúde do governo, representou a consagração das costuras políticas feitas pelo médico e de um conveniente alinhamento dele aos interesses dos inquilinos do Planalto. Queiroga foi anunciado para o lugar do general Eduardo Pazuello na semana em que o país superou a marca de 280 mil mortos pela Covid-19, com média diária próxima de 3 mil. É o pior momento da pandemia no país, que vê a sua rede hospitalar se aproximar do colapso em boa parte dos estados. É também o instante em que o governo Bolsonaro, que há um ano não vem dando o tratamento devido à tragédia, mais se vê pressionado. Além da popularidade do presidente estar em queda, no Congresso até mesmo parlamentares aliados do governo já começam a se mover para cobrar providências mais enérgicas e mais planejamento. Nesta quinta-feira, 18, o senador paulista Major Olímpio morreu em decorrência da doença – outros dois senadores já haviam morrido desde o início da pandemia.

A maior dúvida em Brasília é se Queiroga fará alguma diferença. Pazuello deixou a pasta, mas o clima do “um manda, o outro obedece” parece ter ficado impregnado no Bloco G da Esplanada dos Ministérios, a sede da pasta. “A política é do presidente Bolsonaro, o ministro só executa”, disse o agora ministro, em sua primeira declaração pública. Numa demonstração de submissão às ideias sabidamente equivocadas de Bolsonaro sobre a pandemia, Queiroga mostrou-se contrário ao lockdown, ao dizer que a mais dura ação de distanciamento deve ser aplicada apenas em “situações extremas”. Ele deu margem também para a utilização da hidroxicloroquina, conhecida panaceia bolsonarista, ao afirmar que “existem determinadas medicações que são usadas, cuja evidência científica não está comprovada, mas, mesmo assim, médicos têm autonomia para prescrever”. A nomeação já havia causado desconfiança depois de um convite mal-sucedido à cardiologista Ludhmila Hajjar, que recusou a proposta por “motivos técnicos”, diante dos termos postos à mesa pelo presidente, mas virou motivo de grande preocupação ao se constatar que no auge da pandemia o novo titular da Saúde pode ser, assim como Pazuello, mais um mero cumpridor das ordens de Bolsonaro.

Tarso Sarraf/FolhapresTarso Sarraf/FolhapresBrasil vive o auge da pandemia: país já supera 280 mil mortes pelo coronavírus
Marcelo Queiroga conheceu Jair Bolsonaro e seus filhos antes mesmo da campanha de 2018. A aproximação teve método. Habituado à vida de dirigente de entidade médica, que exige uma boa dose de conexões políticas, e interessado em alcançar postos de maior prestígio, como o próprio comando da Sociedade Brasileira de Cardiologia, Queiroga percebeu o potencial de vitória do então deputado federal Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais e buscou criar pontes com o capitão da reserva. Num primeiro movimento, dedicou-se a estreitar laços com o primogênito do presidente, o senador Flávio Bolsonaro. Aproveitando que já havia presidido a Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia e que transitava com facilidade pela categoria, aproximou-se do cardiologista Hélio Roque Figueira, que vinha a ser nada menos do que o sogro do 01 – a mulher do senador, a dentista Fernanda Antunes Figueira Bolsonaro, integra uma família de profissionais da saúde.

Por meio de Hélio Figueira, médico da conceituada Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro, Queiroga passou a manter contato permanente com Flávio, a ponto de frequentar sua casa em datas comemorativas e virar uma espécie de conselheiro do filho do presidente na área médica. No final de 2018, já com o aval de Flávio, o cardiologista atuou na equipe de transição de governo. Um de seus objetivos começava ali a ser cumprido: o de ficar mais próximo dos poderosos de Brasília. Com a pandemia, Flávio e Queiroga começaram a se falar quase que semanalmente. Os rasgados elogios do 01 durante a posse do médico na presidência da Sociedade Brasileira de Cardiologia, que soaram quase como um vaticínio, mostram que no final de 2019 Flávio era tão ligado ao médico paraibano que já delineava planos ambiciosos para ele. Ao conquistar a confiança do 01 de Bolsonaro, Marcelo Queiroga abriu caminho para ganhar a confiança do 01 do país.

À frente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, sua articulação com o governo federal se intensificou. Colegas passaram a procurar Queiroga quando precisavam resolver alguma pendência burocrática em Brasília – e ele sempre abria portas. “Quando a gente precisava de algo junto à ANS, à Anvisa ou a algum ministério, a gente sabia para quem ligar. E ele sempre conseguia resolver com dois ou três telefonemas”, conta a cardiologista Viviana Lemke, que trabalhou com o novo ministro na Sociedade Brasileira de Hemodinâmica.  “Ele vem se preparando para isso há bastante tempo”, afirma o cardiologista Rogério Sarmento, que também o conhece de perto.

Se a capacidade de articulação e diálogo do médico são destacadas publicamente por colegas e amigos, os seus posicionamentos políticos em detrimento de orientações científicas sempre incomodaram a categoria. Reservadamente, cardiologistas ouvidos por Crusoé atribuíram sua ascensão mais à bem azeitada estratégia política que ele próprio colocou em marcha ao longo de sua trajetória do que propriamente por seus conhecimentos científicos. O tino político vem de longe. Queiroga é de uma família de médicos que sempre teve conexões com o poder. “O currículo dele é paupérrimo do ponto de vista científico. Ele sempre foi um médico sem grande expressão, mas que teve apoio de pessoas poderosas, tanto na Paraíba quanto nacionalmente. E no comando de uma sociedade científica, teve um comportamento político”, disse um ex-colega, sob reserva.

Adriano Machado/CrusoéAdriano Machado/CrusoéO apoio do meio político a Ludhmila Hajjar não foi suficiente para superar as divergências com Bolsonaro
Alinhadíssima com o clã Bolsonaro, a postura do novo ministro em relação à cloroquina gerou desgaste entre os cardiologistas. Desde o início da pandemia, Marcelo Queiroga demonstrou ser um entusiasta do remédio receitado por Bolsonaro como se fosse a cura para a Covid-19. Ele chamou, por exemplo, de “pouco embasada” e “precipitada” a decisão da OMS de suspender pesquisas com a cloroquina. “No Brasil, os estudos continuam e, em breve, teremos resultados importantes para orientar a terapia com evidências de qualidade”, escreveu.

No comando da Sociedade Brasileira de Cardiologia, já unha e carne com Flávio Bolsonaro, Queiroga fez de tudo para não ir na contramão da narrativa do governo sobre a cloroquina.  Tanto que, mesmo depois de várias entidades médicas divulgarem notas públicas contra a prescrição do medicamento, a associação evitava se posicionar oficialmente. Diante da forte pressão interna, que incluiu um princípio de rebelião na diretoria, a entidade divulgou uma nota para afirmar que não recomendava o uso da substância. Horas depois, no entanto, fortemente pressionada por Queiroga, o posicionamento mudou de novo — desta vez, publicado em parceria com o Ministério da Saúde e apoiando a liberdade dos médicos para prescrever o remédio e prometendo apoio na realização de teleconsultas e eletrocardiogramas. O comportamento de Queiroga foi interpretado por colegas como uma atitude política tomada com o único propósito de agradar aos aliados do Planalto.

Em dezembro do ano passado, por indicação do senador Flávio Bolsonaro, o cardiologista conseguiu sua primeira projeção na burocracia federal: foi indicado para uma diretoria da Agência Nacional de Saúde Suplementar. A tramitação não avançou no Senado, em razão da pandemia – como as indicações de autoridades dependem de votação presencial, os processos acumulam-se na casa. A indicação não andou, mas algo ainda mais vantajoso politicamente já estava sendo preparado para o cardiologista pelo 01 de Bolsonaro. Em janeiro, o ministro Eduardo Pazuello virou alvo de um inquérito da Polícia Federal para investigar falhas de conduta na crise sanitária em Manaus. A chegada da segunda onda coincidiu com o recrudescimento da pressão sobre o governo pela entrega de vacinas e com a erosão da popularidade de Jair Bolsonaro diante do previsível desastre.

Foi quando, no Planalto, o presidente e seus filhos começaram a arquitetar uma operação para transformar Pazuello em bode expiatório da crise, que incluía sua demissão e a promoção de um “rebranding” na imagem do presidente. A percepção óbvia foi a de que até mesmo entre o eleitorado mais fiel a pecha de antivacina era extremamente negativa nas circunstâncias atuais. A despeito da coleção de frases de Bolsonaro recheadas de questionamentos à segurança e à eficácia dos imunizantes, a ideia era tentar difundir a narrativa de que Pazuello e não o presidente era o principal culpado pela tragédia anunciada. Por isso, para o alívio também da ala militar, que não suportava mais ser associada a tanta desgraça na área de saúde, rifá-lo foi a saída encontrada para embalar a estratégia de redução de danos ao presidente. Para tentar fazer com que a demissão fosse menos desonrosa para Eduardo Pazuello, o Planalto circulou a versão de que o general estaria doente. A narrativa, porém, não foi combinada com o próprio, uma vez que a tese foi refutada publicamente pelo general horas depois. “Não vou pedir para ir embora. Não é da minha característica”, afirmou, na véspera de ser demitido.

DivulgaçãoDivulgaçãoO Centrão, de Arthur Lira, já arrumou uma justificativa para desembarcar do governo caso Bolsonaro se inviabilize politicamente
O próprio Pazuello, entretanto, havia participado da reunião de Bolsonaro com Ludhmila Hajjar, a primeira candidata ao posto, e já estava ciente de que sua permanência no cargo estava com os dias contados. O flerte do Planalto com Ludhmila causou surpresa – a médica tinha uma série de declarações e artigos com teses frontalmente contrárias aos posicionamentos do Planalto, como a defesa de medidas restritivas e críticas ao chamado “tratamento precoce”. Apesar de preferir um nome político, o Centrão topou chancelar a indicação da cardiologista, mas a conciliação entre uma cientista e um negacionista, como já era previsto, não se concretizou. Com pressa em apresentar publicamente uma solução depois do vexame da primeira tentativa, o presidente tirou da cartola a indicação de Flávio Bolsonaro, antes mesmo de ouvir os aliados do Congresso.

Com isso, a escolha de Queiroga criou um problema adicional para o presidente no momento em que sua rejeição entre os brasileiros bate recorde atrás de recorde: deu motivo para o Centrão abandoná-lo mais adiante, caso lhe seja conveniente. As ameaças já estão no ar. Um influente político do Centrão sintetizou a O Antagonista“A gente quis ajudar, mas ele não quis ser ajudado. Agora, terá que acertar na seleção do seu quarto ministro da Saúde porque, caso seja necessário fazer uma nova troca, o país não vai parar para discutir quem será o quinto, mas sim o próximo presidente da República”.

O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos, do PL, adotou tom semelhante. “Quero crer que esse discurso dele (Bolsonaro) de continuidade é retórico, para preservar Pazuello e o governo. Se fosse para seguir com a mesma política, que está dando errado, seria melhor manter o general. Não dá para considerar exitosa uma política que gera quase 3 mil mortes por dia”, disse a Crusoé.

A insatisfação do Centrão não deve ficar só no discurso. O grupo já discute maneiras de retaliar no curto prazo o governo. As estratégias vão desde a aprovação de requerimentos de convocação de integrantes da equipe ministerial em comissões temáticas ao atraso na votação de medidas consideradas prioritárias pelo governo. Como diz um político do bloco fisiológico, o Centrão “até vai no enterro e chora, mas não entra junto na cova”.

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