MarioSabino

Eu não aguento mais

19.03.21

Eu não aguento mais o vírus de hoje nem os de amanhã, ainda adormecidos nos armários, eu não aguento mais ficar em casa, eu não aguento mais usar máscara, eu não aguento mais ver enterro na televisão, eu não aguento mais ver apresentador de televisão com cara de enterro, eu não aguento mais ver UTI lotada, eu não aguento mais festa clandestina, eu não aguento mais praia lotada, eu não aguento mais frequentador de bar, eu não aguento mais jovem menosprezando vida de velho, eu não aguento mais negacionista, eu não aguento mais virologista, eu não aguento mais ver o meu filho caçula fechado no quarto, eu não aguento mais o Brasil, eu não aguento mais ter de ficar no Brasil, eu não aguento mais lugar nenhum, eu não aguento mais ouvir que ainda tem o aquecimento global, eu não aguento mais ouvir o Doria falar em ciência, eu não aguento mais ouvir o Bolsonaro falar sobre qualquer assunto, eu não aguento mais ter de aguentar novamente o Lula, eu não aguento mais engolir as lorotas do Guedes, eu não aguento mais deputado, eu não aguento mais senador, eu não aguento mais ministro do STF, eu não aguento mais ministro da Saúde, eu não aguento mais militar, eu não aguento mais bolsonarista, eu não aguento mais petista, eu não aguento mais ladrão.

(“Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência do ser coletivo, é a aventura de todos. O primeiro movimento da mente que se estranha é, portanto, reconhecer que ela compartilha esse sentimento com todos os homens, e que a realidade humana, em sua totalidade, sofre com esse distanciamento em relação a si mesma e ao mundo. O mal que apenas um homem sentia torna-se peste coletiva. Na nossa provação diária, a revolta desempenha o mesmo papel que o cogito na ordem do pensamento: ela é a primeira evidência. Mas essa evidência tira o indivíduo de sua solidão. Ele é um território comum que fundamenta o primeiro valor dos homens. Eu me revolto, logo existo.” Albert Camus, em O Homem Revoltado.)

Eu não aguento mais rede social, eu não aguento mais meme, eu não aguento mais burrice, eu não aguento mais algumas inteligências de 140 caracteres ou textão, eu não aguento mais mediocridade, eu não aguento mais o politicamente correto, eu não aguento mais o incorreto politicamente, eu não aguento mais o Zoom, eu não aguento mais youtuber, eu não aguento mais ver gente com conexão ruim, eu não aguento mais ver comentarista com estante desarrumada, eu não aguento mais ver comentarista com orquídea branca ao fundo, eu não aguento mais ouvir criança gritando ao fundo de reunião, eu não aguento mais o meu cachorro latindo ao fundo, eu não aguento mais trabalhar por WhatsApp, eu não aguento mais ser jornalista, eu não aguento mais jornalistas, eu não aguento mais o jornalismo, essa profissão que destrói a sensibilidade intelectual da posteridade (Karl Kraus), eu não aguento mais os ditames do Google, eu não aguento mais português errado, eu não aguento mais assistir a reprise de filme, eu não aguento mais ver série, eu não aguento mais esperar por série, eu não aguento mais cerimônia virtual, eu não aguento mais âncora americano de cabelo armado, eu não aguento mais italiano velho estrelando show de rock, eu não aguento mais integrante de coletivo francês dando palpite, eu não aguento mais humorista brasileiro em esquete sobre pandemia.

(O meio é a mensagem, Marshall McLuhan.)

Eu não aguento mais entregador de comida, eu não aguento mais ter de fazer conta de padeiro, eu não aguento mais exibição de rico, eu não aguento mais lamentação de pobre, eu não aguento mais o silêncio resignado dos pobres, principalmente, eu não aguento mais hábitos, costumes e cacoetes de classe nenhuma, mas a Amazon eu aguento.

(“Quem compra e mente, em sua bolsa sente.” Miguel de Cervantes, em Dom Quixote.)

Eu não aguento mais ouvir falar em gripe espanhola, eu não aguento mais ouvir falar em morcego, eu não aguento mais ouvir em pangolim, eu não aguento mais ouvir falar no laboratório de Wuhan, eu não aguento mais ouvir falar em cepa, eu não aguento mais ouvir falar em medo de vacina, eu não aguento mais ouvir falar em obrigatoriedade da vacina, eu não aguento mais ouvir falar que não tem vacina, eu não aguento mais ouvir falar em guerra das vacinas, eu não aguento mais ouvir nome de farmacêutica, eu não aguento mais espirrar sem medo de ter Covid, eu não aguento mais fingir que está tudo bem.

(“Designar uma doença é apressar os seus progressos”. Stendhal, em algum lugar do passado, como a Síndrome de Stendhal.)

Eu não aguento mais você, hypocrite lecteur, mon semblable, mon frère na revolta coletiva (o francês é de Baudelaire), eu não aguento mais eu (nem você a mim), eu não aguento mais as flores do mal, eu não aguento mais as flores do bem, eu não aguento mais dizer que não aguento mais, eu não aguento mais o que já não aguentava mais antes de tudo começar, me deixa em paz que eu já não aguento mais (Ivan Lins).

E, no entanto, temos de aguentar, temos de nos aguentar reciprocamente, porque existir é simplesmente preciso, a existência como navegação permanente sem destino crível, até que um asteroide de dois quilômetros de diâmetro nos atinja a 124 mil quilômetros por hora — como o 2011 FO32, por exemplo, que neste momento está bem perto de nós, a uma distância de apenas cinco vezes o trajeto entre a Terra e a Lua.

Vai passar, se é que você me entende.

(“Um jogo de dados jamais abolirá o acaso.” Mallarmé, em Um jogo de dados.)

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