MarioSabino

O bisão mágico da Lava Jato

12.03.21

Enquanto eu acompanhava a fala do germanista Gilmar Mendes na sessão da Segunda Turma do STF em que ele cumpriu exemplarmente o serviço de exterminar a Lava Jato, fui tomado por uma sensação de náusea. À náusea, sucederam-se a dor de cabeça, a insônia e, a ambas, a indignação. Dentro do natural processo de depuração a que precisamos recorrer, agora tento de alguma forma elaborar intelectualmente o que ocorreu. Não para justificar o injustificável, mas para tentar domar os instintos mais primitivos, o que é pressuposto da civilização.

A palavra “primitivos” me remete ao austríaco E.H. Gombrich, autor de História da Arte, no qual o sábio se torna professor, para nos ciceronear didaticamente pelos campos da pintura, da escultura e da arquitetura. A pintura, especialmente, é a arte que mais me fascina. Sem a menor habilidade para o cavalete e os pigmentos, tento aprender a pintar com as palavras. Também aqui, infelizmente, não tive tutores, e se hoje traço linhas apenas corretas como estas, foi graças ao aprendizado solitário que extraí da série de resenhas, artigos e reportagens ruins na essência e cheios de clichês nos inícios dos meus 37 anos de carreira. As boas leituras me ajudaram, mas é mesmo a partir do erro que os desprovidos de verdadeiro talento se desenvolvem, um clichê confirmado por mim no meu dia a dia laborativo.

A pintura: voltemos a ela depois de mais uma digressão em troca da qual, como alguns leitores costumam deixar registrado na área de comentários, não sou pago para fazer. Na impossibilidade de ir a mostras ou visitar museus, Gombrich preenche de alguma forma a minha necessidade permanente de adentrar o universo da arte. Nos últimos meses, venho relendo capítulos do livro cuja primeira edição data de 1950, e foi História da Arte que me levou a elaborar intelectualmente o que ocorreu na Segunda Turma do STF. Em algum momento, não me lembro mais onde, eu disse que o PowerPoint de Deltan Dallagnol, que apontava Lula como o chefe da organização criminosa que saqueou a Petrobras, era a mais bela obra de arte brasileira. A sua tosquidão ilustra melhor o nosso caráter nacional do que a do Abaporu, de Tarsila do Amaral, “o quadro mais feio do mundo”, na definição de Millôr Fernandes. A minha afirmação agora ganha contornos antropológicos que julgo bastante pertinentes.

Gombrich explica que a arte não nasceu como busca e celebração do belo, exaltação da religião, comentário da filosofia, crítica da sociedade ou expressão de sentimentos. Todos esses aspectos foram sendo incorporados ao longo dos séculos. A arte nasceu como concretização de um pensamento mágico dos povos “primitivos” (as aspas que relativizam o termo já eram usadas por Gombrich em 1950), e esse pensamento mágico ainda subsiste em nós. O pensamento mágico é o de que, através da representação imagética, nós apreendemos, dominamos, ferimos ou exorcizamos o que foi representado. Os magníficos bisões, mamutes e cavalos rupestres achados nas cavernas de Altamira, na Espanha, e Lascaux, na França, tinham esta função: possibilitar a sua caça e a sua domesticação.

Diz Gombrich:

“Não se podem compreender esses estranhos inícios da arte se não tentamos penetrar no espírito dos povos primitivos. É preciso que tentemos compreender o que os levou a considerar as imagens como uma força a empregar e não como coisas agradáveis a olhar. Eu não acho que seja tão difícil de entender esse sentimento. Basta que queiramos ser verdadeiramente honestos com nós mesmos e descobrir se não há algo de ‘primitivo’ dentro de nós. Em vez de começar pela época glacial, comecemos então por nós mesmos. Eis aqui, no jornal de hoje, a fotografia do nosso campeão ou do nosso ator preferido: teríamos o prazer de lhes furar os olhos com um alfinete? Isso seria indiferente para nós tanto como perfurar o jornal em outro lugar? Acho que não. O meu pensamento consciente sabe bem que o que eu faço não pode fazer mal ao meu amigo ou a meu herói; eu sinto, no entanto, certo medo de prejudicá-los. Há, dentro de mim, um sentimento absurdo de que o meu gesto poderia fazer mal ao próprio personagem. Se não estou errado, se essa ideia irracional e estranha persiste no nosso espírito nestes tempos de espantosas descobertas científicas, não pode ser tão surpreendente que tais ideias tenham existido em quase todos os povos ditos primitivos. Em todas as partes do mundo, curandeiros e feiticeiras quiseram assim executar obras mágicas. Eles fabricaram pequenas imagens dos seus inimigos, eles perfuraram os seus corações ou as queimaram, esperando que os seus inimigos, eles próprios, sofressem com isso. Quando manifestantes queimam os retratos dos seus adversários, não há nisso a sobrevivência de uma tal superstição? Às vezes, os ‘primitivos’ não sabem mais do que crianças distinguir a imagem da realidade. Um dia, depois que um artista europeu desenhou o gado que lhes pertencia, indígenas ficaram consternados: ‘Se você os levar, do que nós viveremos?’.” 

O PowerPoint de Dallagnol continua a ser, para mim, a mais bela obra de arte brasileira. O significado que ela adquiriu, contudo, ficou evidente na sessão da Segunda Turma do STF em que o germanista Gilmar Mendes massacrou a Lava Jato. Ela é como a representação rupestre do bisão a ser caçado, do adversário a ser dominado, do mal a ser exorcizado. A sua simples confecção fez crer a todos nós que o bisão havia sido realmente caçado, que o adversário havia sido realmente dominado, que o mal havia sido realmente exorcizado. Tudo não passou de pensamento mágico. A realidade é o germanista Gilmar Mendes, a realidade é a jurisprudência de ocasião, a realidade é Lula, a realidade é Bolsonaro. A realidade é esta caverna na qual vivemos acuados. Como sair dela?

Paulo Lisboa/Brazil Photo Press/Folhapress

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