Compra-se um partido
Jair Bolsonaro deu mais uma demonstração de prepotência na última segunda-feira, 8, ao dizer que pretende “ser dono” de um partido. Sem filiação desde novembro de 2019, quando rompeu com o PSL por divergências quanto à administração da legenda, e incapaz de criar sua própria agremiação, o presidente agora busca abrigo para viabilizar seu projeto de reeleição. Os votos e a popularidade de Bolsonaro alimentam a cobiça de presidentes de siglas que sonham com a ampliação de suas bancadas e querem, por consequência, ter acesso aos polpudos repasses do fundo partidário e do fundão eleitoral. O que eles não querem, é claro, é o ônus de ter um “dono”, como partilhar as decisões sobre o destino de recursos ou entregar o controle dos diretórios regionais, uma exigência dos bolsonaristas. Para tentar viabilizar o plano de comandar um partido já consolidado, Bolsonaro agora foca nas tratativas com legendas nanicas. Na mira dele estão opções que mostram uma grande dose de incoerência das negociações. Com a ajuda de emissários, o presidente negocia com o PSC e com o Patriota, siglas conservadoras que poderiam abrigá-lo sem causar grande estranhamento, mas também com o Partido da Mulher Brasileira, uma agremiação que tem entre suas bandeiras a defesa da população LGBTI e não tem poupado ataques ao próprio Bolsonaro.
Parlamentares aliados do governo pressionam pela escolha de um partido consolidado, com estrutura, dinheiro e tempo de TV. A única opção no cenário que se enquadraria nesses requisitos é o PSL, a antiga casa de Bolsonaro. A ideia de um possível retorno, depois dos estrepitosos barracos com o grupo de Luciano Bivar, anima os governistas remanescentes na sigla, mas a pacificação é complexa. Quando Bolsonaro deixou o PSL atirando e anunciou seus planos de criar a Aliança pelo Brasil, a aposta era que ele conseguiria viabilizar a sigla antes das eleições de 2020. Dezesseis meses depois do lançamento, a Aliança tem apenas 77,6 mil assinaturas validadas pela Justiça Eleitoral, o que representa parcos 15% das 492 mil necessárias. Além das dificuldades impostas pela pandemia à coleta de apoios, uma das principais causas do naufrágio do projeto foi a falta de empenho do próprio presidente. À exceção de postagens feitas à época do lançamento do partido, ele jamais se engajou pessoalmente na empreitada. No final de 2020, Bolsonaro começou a reclamar da burocracia e reconheceu publicamente as dificuldades de criar a Aliança. Uma das primeiras opções analisadas foi um retorno ao Progressistas, partido ao qual foi filiado até 2015 – ele pediu a desfiliação depois que a agremiação anunciou apoio à reeleição de Dilma Rousseff. Cogitou ainda o PTB, do mensaleiro Roberto Jefferson, e o Republicanos, partido ligado à Igreja Universal que abrigou seus filhos. Nenhuma negociação com siglas grandes, entretanto, prosperou. Caciques partidários profissionais, como o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o presidente do Progressistas, Ciro Nogueira, que sabem muito bem o valor do butim partidário, jamais aceitariam ingerências externas.
Entre as siglas menores, uma das primeiras que o presidente da República pôs em sua lista foi o Patriota. Criada em 2012 como Partido Ecológico Nacional (PEN), a legenda mudou de nome em abril de 2018, a pedido do próprio Bolsonaro. À época, o então pré-candidato ao Palácio do Planalto estava em busca de uma agremiação para participar das eleições e negociou com Adilson Barroso, líder do PEN, seu embarque. Gustavo Bebianno, o já falecido coordenador de campanha, foi quem convenceu Bolsonaro a escolher o PSL. “Agora, se der certo e ele finalmente vier para cá, seremos em breve o maior partido da pátria. Estamos aguardando e em oração”, diz Barroso, esperançoso, sobre a nova chance de filiação. O Patriota elegeu nove deputados federais em 2018 e, no ano passado, emplacou 49 prefeitos, com gastos de 35,1 milhões de reais do fundão eleitoral. Como boa parte dos partidos, a legenda é fonte de renda para a família de seu presidente: além de Adilson Barroso, seu irmão Aguinaldo e sua filha, Fabiana, também aparecem entre os beneficiados de pagamentos do partido na última prestação de contas apreciada pela Justiça Eleitoral. No ano passado, Fabiana foi eleita vice-prefeita da cidade paulista de Barrinha – toda a campanha do candidato a prefeito da chapa foi paga pelo Patriota, que também financiou os candidatos a vereador.
Na última segunda-feira, o presidente reconheceu que há mais pretendentes na história. Ele disse estar “namorando” o Partido da Mulher Brasileira. A negociação beiraria o surrealismo, não estivéssemos no Brasil. A legenda que Bolsonaro cogita como opção tem posição declaradamente anti-Bolsonaro. Nas redes sociais do PMB, não faltam, por exemplo, memes que associam o notório Fabrício Queiroz a laranjas podres. Também há defesas enfáticas da defesa da criminalização da homofobia, assunto que suscita a ira do presidente da República e de seu entorno mais próximo. A atual “dona”do partido, Suêd Haidar, nasceu em um quilombo e, em sua atividade de militante, fundou um centro comunitário em uma favela, que depois foi batizado por ela própria de Creche Luiz Carlos Prestes, o mais célebre chefe comunista da história do Brasil – outro ponto que se choca com o discurso de Bolsonaro. Difícil imaginar, portanto, uma trajetória mais conflitante. Apesar de insólita, a parceria é viável porque o PMB é o único partido em que Bolsonaro teria de fato o controle que deseja. “Ele está realmente com um pé aqui dentro”, diz o advogado Jaime Fusco, fundador do PMB. Nesta semana, Fusco pediu a desfiliação da sigla por discordar das negociações. “A presidente do PMB (Suêd Haidar) acha que, sem isso, o partido acaba. Mas não dá para queimar a biografia dessa forma”, diz.
Se as tratativas prosperarem, Suêd deve entregar o comando político da agremiação a Bolsonaro e pode até permitir a mudança do nome do partido. Mas não pretende abrir totalmente mão do controle sobre as questões administrativas – o que inclui o caixa partidário. Há milhares de razões para isso. Na prestação de contas de 2018, último ano em que o partido teve acesso a recursos do fundo partidário, a sigla pagou 468 mil reais a Suêd Haidar. No ano passado, ela disputou a prefeitura do Rio e recebeu 341 mil reais de recursos do fundão eleitoral. Parentes dela também foram beneficiados. O filho de Suêd, Sidclei Bernardo, além de ter recebido pagamentos com dinheiro do fundo partidário até 2018, foi destinatário de 110 mil reais para disputar uma cadeira na Câmara de Vereadores. Suêd não quis falar com Crusoé. Na aproximação do PMB com Bolsonaro, nem tudo é 100% estranho. No Rio, o partido é intrinsicamente associado a milicianos. A vice da chapa de Suêd em 2020 foi Jéssica Natalino, filha do ex-deputado Natalino Guimarães, condenado por chefiar uma milícia na zona oeste. As duas, aliás, foram alvo de uma operação da Polícia Federal, deflagrada para investigar lavagem de dinheiro de milícias destinado a financiar campanhas eleitorais no Rio.
A ideia de Bolsonaro de ter um partido sob seu domínio remete às velhas práticas do sistema político brasileiro. A lógica é simples. O mais difícil, como mostra a experiência quase fracassada da Aliança pelo Brasil, é criar o partido. Uma vez resolvida a burocracia, se a legenda tem candidatos capazes de carrear votos — como é o caso do presidente – a sigla rapidamente ganha musculatura. Politicamente, quem controla uma legenda passa a manejar as articulações a seu bel-prazer. Mas há um outro aspecto tão ou mais importante: como o caixa partidário passa a receber repasses de dinheiro público na proporção de seu desempenho eleitoral, ter poderes sobre a administração do cofre pode ser determinante para o futuro de um grupo político. A passagem de Bolsonaro pelo PSL é um exemplo disso. Ao chegar à legenda, com chances reais de se eleger, ele exigiu ter o controle do partido. Bivar topou. Por um período, a estrutura nacional da legenda e boa parte dos diretórios regionais ficaram sob o domínio do estado-maior bolsonarista. A vitória na eleição presidencial mudou a história do partido. Na esteira da onda Bolsonaro, o partido elegeu 52 deputados federais – na eleição anterior, em 2014, tinha conseguido apenas uma das 513 cadeiras da Câmara. Sua participação no fundo eleitoral saltou de 9,2 milhões de reais para 199 milhões. No mesmo período, o naco do fundo partidário a que tinha direito saltou de 7,2 milhões para 98 milhões. Com o crescimento, vieram os percalços. Ao ver a sigla prosperar, logo Bivar reivindicou a retomada de ao menos uma parte de seus poderes. Foi então que veio o racha. Agora, ao desejar de novo um partido que tope lhe dar poderes de mando absolutos, Bolsonaro pretende repetir a estratégia – de preferência sem ter que devolver a legenda depois para seus donos originais.
As mudanças recentes no quadro político tornaram o plano presidencial ainda mais urgente. A volta de Luiz Inácio Lula da Silva para a corrida de 2022 fez com que parlamentares bolsonaristas passassem a defender com mais ênfase a filiação do presidente da República a um partido que já tenha estrutura e tempo de TV. Há um consenso de que com uma eleição polarizada será preciso ter mais recursos e espaço para propaganda. O PSL, onde Bolsonaro ainda tem um punhado de aliados, seria a opção mais prática. O vice-presidente do partido, o deputado Júnior Bozzella, reconhece a pressão da ala bolsonarista pela volta do presidente, mas rechaça a ideia de entregar, de novo, o comando do partido ao grupo de Bolsonaro. “Quem faz pressão (pela filiação do presidente ao PSL) são os deputados ligados a ele. O Bolsonaro não conseguiu finalizar a Aliança pelo Brasil e agora quer sequestrar algum partido para chamar de seu”, diz Bozzella.
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