MarioSabino

Lula ou Bolsonaro: quem é um perigo para a democracia?

10.08.18

Minha primeira régua como eleitor é bastante simples: não voto em quem fala errado e não lê livros. Os livros que julgo certos, bem entendido, o que não significa que você tenha de concordar com eles. Por exemplo, se noto que um sujeito nunca ouviu falar de Retrato do Brasil, de Paulo Prado, eu o risco do meu caderninho (como tantas outras da sociologia nacional, a obra requer uma leitura sem anacronismos: mostra como certa elite enxergava o país, o que penso ser muito didático para entender como chegamos aqui). Exagero retórico, obviamente, posso deixar passar essa. A leitura dos livros certos, no entanto, é um critério que sempre evitou que eu votasse em Lula e evitará que vote em Jair Bolsonaro ou em qualquer outro candidato que está no páreo. Na verdade, é um critério que me levou a votar em muito pouca gente desde a década de 1980, quando comecei a minha via-crúcis de eleitor.

O meu colega Ruy Goiaba já escreveu que ler e ser culto não fazem ninguém necessariamente melhor. Concordo. Em Vidas dos Césares, Suetônio conta que o imperador Nero teve o filósofo Sêneca como preceptor e conselheiro, compunha versos, achava-se grande cantor, a ponto de evitar falar a fim de conservar as cordas vocais, nutria “um amor não pequeno” pela pintura e escultura, chegou a dizer que “a arte o manteria vivo” – e, entre outras atrocidades, forçou Sêneca a suicidar-se e mandou matar a mãe (de quem examinou o cadáver, elogiando algumas partes e criticando outras), o meio-irmão, a mulher e o tio. Também incendiou Roma por senso estético. Ele não gostava da feiura dos velhos edifícios, das ruas demasiado estreitas e queria apropriar-se de áreas vizinhas ao seu magnífico palácio, a Domus Aurea, para embelezá-las (Domus Aurea que tinha afrescos com cenas da Ilíada, de Homero, uma das obras preferidas de Nero). Escreve Suetônio: “Alegrado — são as suas palavras — pela ‘pela beleza das chamas’, cantou A destruição de Troia”.

Vidas dos Césares é um dos livros que julgo certos. Seria recomendável que os governantes o lessem, porque relata como o poder extremo leva a loucuras extremas que sobrepujam eventuais realizações positivas. No capítulo dedicado a Nero, aliás, Suetônio começa relatando o que o monstro fez de razoável – como tirar a licença dos condutores de quadrigas para promover tumultos e roubar. O autor também inclui entre as decisões acertadas de Nero ter supliciado cristãos, “gênero de indivíduos dedicados a uma nova e maléfica superstição”. Como bons cristãos, perdoemos o romano Suetônio.

Nero é exemplo de que leitura não implica sabedoria. Contudo, na minha opinião talvez intransferível, não ler torna alguém pior. No mínimo, porque demonstra falta de capacidade de concentração. Boa parte dos brasileiros pensa o oposto, não importa o espectro ideológico a que pertençam. Uma das razões de Lula ter sido elevado ao panteão da esquerda foi a sua falta de cultura, que expressaria a concreta sabedoria proletária, contra a alienação encobridora do capitalismo. Bolsonaro subiu ao altar da direita brasileira também por causa do seu anti-intelectualismo de militar adestrado nas regras imutáveis da balística – um tiro de canhão nos relativismos morais típicos do pensamento esquerdista. Lula e Bolsonaro são, assim, igualmente louvados pela sua ignorância.

É preciso admitir, no entanto, que há uma diferença fundamental entre os dois. Lula representa uma ameaça real à democracia; Bolsonaro, não, ao contrário do que propagam na imprensa. Pelo menos até o momento.

No poder, Lula e seus seguidores tentaram criar um Conselho Federal de Jornalismo, para amordaçar a imprensa. Quiseram expulsar o americano Larry Rohter do Brasil, porque o correspondente do jornal The New York Times fez uma reportagem sobre o alto consumo etílico do petista. Tiraram da editora Abril publicidade de estatais, por causa da cobertura da Veja dos escândalos petistas. Instituíram o mensalão, esquema para comprar votos da base aliada com dinheiro público. Forjaram um dossiê contra José Serra, pago com dinheiro da Odebrecht (o nosso dinheiro, quer dizer). Financiaram, com recursos públicos, blogs sujos para manchar a reputação de jornalistas críticos ao governo. Aparelharam a máquina federal de alto a baixo. Criaram um Conselho Nacional de Justiça para tentar controlar magistrados independentes. Cumpliciados com as maiores empreiteiras do país, dilapidaram a Petrobras, para enriquecer pessoalmente e promover campanhas políticas com montanhas de dinheiro roubado, um claro atentado ao âmago da democracia representativa. Aliaram-se ao venezuelano Hugo Chávez e ao cubano Fidel Castro, além de outros tiranetes latino-americanos, para minar liberdades fundamentais e tentar perpetuar-se no poder. Ao final, Dilma Rousseff — criatura de Lula — destruiu a economia, botou milhões de brasileiros na fila do desemprego e promoveu uma enorme fraude fiscal para maquiar as contas do governo, contrariando a lei e cometendo o crime de responsabilidade que a levou ao impeachment.

Bolsonaro não fez nada disso. É, até o momento, friso, apenas mais um político ignorante. A diferença é que o fato de ser de direita é um agravante na universidade e nos meios de comunicação colonizados pela esquerda. A sua defesa às vezes pitoresca do regime militar não significa automaticamente que queira virar ditador ou vá legalizar a tortura, como já deram a entender (e decerto a escolha do general Hamilton Mourão ajuda bastante os seus detratores). Quando diz que policial tem de matar bandidos e as pessoas têm o direito de autodefesa, ele expressa, Ipanema goste ou não, a opinião da maioria dos cidadãos, não de um gueto. Bolsonaro ataca a imprensa, mas nunca falou em “controle social da mídia”. A sua misoginia (Janaína Paschoal não o acha misógino), grosseria e seus comentários politicamente incorretos sobre negros são os mesmos das conversas de boteco de petistas, assim como as suas piadas sobre gays – Bolsonaro só mostra a imprudência de dizer bobagens abertamente. Ou talvez a esperteza. Encontrei-o uma vez e perguntei se não iria suavizar o seu discurso. Respondeu que não, porque era esse discurso que o havia trazido até os patamares de popularidade que ocupa. Como se viu na entrevista na GloboNews, e se verá em todos os debates, o candidato desnorteia os jornalistas porque não atenua os seus pontos de vista nem tenta esconder o seu despreparo. Usa o reconhecimento desse despreparo como ativo. Como outra prova da sua diferença positiva em relação aos concorrentes, subvertendo a lógica eleitoral. Os seus eleitores aplaudem porque ele parece mais genuíno do que os concorrentes. Não menos importante, é enfático ao afirmar ser contra o PT e defender integralmente a Lava Jato. Bolsonaro traduz em ondas tropicais o cansaço de uma parcela expressiva de eleitores decepcionada com o cinismo da esquerda e a desonestidade acima da média histórica dos políticos em geral.

Eu jamais votaria em Lula ou no seu poste e nunca votaria em Bolsonaro, como já disse. Mas o primeiro provou ser infinitamente mais perigoso para a democracia do que o segundo – inclusive porque ainda conta com um partido forte e aliados de ocasião poderosos. Bolsonaro não tem quase ninguém do establishment do seu lado. Com o PT de volta à Presidência, o país entrará em curto-circuito institucional. Lula será beneficiado com indulto e, criminoso condenado, nomeará o ministro da Justiça, o diretor da PF, o PGR, ministros do STF e do STJ e desembargadores federais – além do presidente da Petrobras, empresa que está do lado dos acusadores em processos contra o chefão petista. Com Bolsonaro na Presidência, ele terá de fazer alianças de forma idêntica aos outros – e o risco de não conseguir tecê-las será baixo, tendo a crer, porque político nacional gosta de aderir a quem tem a caneta na mão. Obviamente terá de mostrar flexibilidade, como qualquer Onyx Lorenzoni é capaz de lhe dizer. A gritaria da esquerda será trilha sonora constante durante todo o seu mandato, a estridência de Bolsonaro idem, mas estamos acostumados ao barulho desde sempre.

Sob Bolsonaro, o Brasil continuará a ser um país de segunda categoria, com um ministro da Fazenda competente que conseguirá fazer um décimo do que promete. Se Paulo Guedes aguentar o tranco e o Planalto e o Congresso não atrapalharem além da conta, gastos públicos serão contidos e algumas estatais, fechadas ou vendidas. Quem sabe haverá uma simplificação fiscal. Nada muito diferente do que ocorrerá no caso de Geraldo Alckmin conquistar a cadeira presidencial. Poderemos entrar, assim, num modesto círculo virtuoso, porque o mercado se contenta com pouco, visto que não nutre maiores esperanças em relação ao Brasil, que já foi devidamente precificado, desde que mantido em condições mínimas de temperatura e pressão. Sob Lula e o seu poste (ou Ciro Gomes), mergulharemos no caos, com a economia entregue desta vez a um maluco desenvolvimentista que revogaria as poucas reformas feitas sob Temer.

Dito isso, volto a Suetônio. Depois de Nero, o capítulo é sobre Galba. Ao contrário de Nero, um gastão, Galba era conhecido por sua avareza. Precisaríamos de um presidente avaro que durasse mais do que Galba. Ele foi assassinado e teve a cabeça cortada depois de sete meses no poder.

Atualização: o artigo acima está na coletânea Me Odeie pelos Motivos Certos, publicado em 2021, ao qual foi acrescido o comentário a seguir:

“Uma vez no poder, Jair Bolsonaro açulou as suas hostes contra os poderes constituídos, dando pretexto a que manifestações legítimas de liberdade de expressão fossem misturadas às ilegítimas. Ele também flertou com o autogolpe, tentando cooptar militares. Como escrevi em outro artigo, ‘depois de explodir todas as pontes de tráfego decente com o Congresso — com a ajuda estimável do gabinete do ódio especializado em fake news, equivalente aos blogs sujos do petismo — e inviabilizar um diálogo político minimamente saudável com deputados e senadores, o presidente sem partido estabeleceu uma pinguela com o Centrão, para contornas as dificuldades que ele mesmo criou e, no limite, um processo de impeachment. Sob os aplausos dos seus cúmplices no parlamento (petistas incluídos), Bolsonaro chancelou a destruição da Lava Jato e atingiu o máximo da infâmia ao forçar a demissão de Sergio Moro do Ministério da Justiça, a fim de mudar o diretor-geral da Polícia Federal e, assim, tentar evitar que investigações conduzidas no Rio de Janeiro alcançassem os seus filhos ou até ele próprio. A demissão de Moro teve ainda outro motivo: o medo de que o ex-ministro da Justiça lhe fizesse sombra em 2022. Bolsonaro, ao contrário do que dizia na campanha, quer ser reeleito. Com a cabeça na reeleição e refém do Centrão, o presidente estoura os cofres públicos. Em meio à urgência sanitária mundial, ele ainda demonstra o mais sociopático desprezo pela perda de milhares de vidas dos seus concidadãos’. Como não poderia deixar de ser, declarou guerra aberta à imprensa independente, que aponta os desvios no seu governo e critica o seu comportamento abjeto e característico de um sociopata no enfrentamento a pandemia. Para tanto, usa da intimidação judicial. Enquanto bate no jornalismo independente, ele beneficia empresários amigos no setor de comunicação, a fim de obter noticiário favorável, quando não francamente propagandístico. Desesperado com as consequências políticas e criminais do relatório da CPI da Covid, além da possibilidade cada vez maior de perder a eleição em 2022, passou a atacar com virulência o STF e o TSE, com xingamentos a ministros do Supremo, e a divulgar notícias falsas sobre a falta de segurança das urnas eletrônicas. O seu alvo principal é o ministro Luís Roberto Barroso, que ordenou a abertura da CPI no Senado, em obediência à Constituição e ao regimento da casa, e preside neste momento o TSE. O ministro é forte opositor da adoção do voto impresso, que virou cavalo de batalha de Bolsonaro, apesar de ter sido fonte de inúmeras fraudes em eleições em todos os níveis, o contrário do que o presidente apregoa. Qualquer discussão racional sobre o tema foi anulada pelo destempero do presidente e as suas ameaças de intervenção militar. Em reação inédita na história da República, o STF e o TSE abriram investigações sobre a conduta de Jair Bolsonaro, atribuindo-lhe a suposta prática de diversos crimes. Na economia, o seu discurso de campanha, em prol de uma agenda liberal, deu lugar ao fisiologismo, à perpetuação do inchaço da máquina estatal, ao assistencialismo eleitoreiro e à intervenção federal em estatais que eram para ser privatizadas. A política populista de juros baixos resultou em aumento exponencial do preço do dólar e, consequentemente, em aumento de inflação. Hoje é possível dizer que Jair Bolsonaro e Lula se equivalem como ameaças à democracia, cada um a seu modo. E as recidivas de ambos podem ser ainda piores para o país.” 

 

 

 

 

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