Adriano Machado/CrusoéA mansão comprada por Flávio Bolsonaro tem mais de mil metros quadrados

O Ronaldinho de Bolsonaro

O que a compra de uma mansão em Brasília revela sobre o tino do primogênito do presidente da República para os negócios – e por que a transação lança ainda mais suspeitas sobre ele
05.03.21

Quando os aportes milionários da Telemar na empresa de jogos e entretenimento de seu primogênito ganharam o noticiário, em 2006, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva debochou daqueles que questionavam o interesse da gigante de telefonia na sociedade com Fábio Luís, o Lulinha. “Que culpa eu tenho se meu filho é o Ronaldinho dos negócios?“, disse na ocasião, referindo-se ao jogador de futebol. Talvez a retórica antipetista iniba Jair Bolsonaro de repetir agora o mesmo argumento, mas a compra de uma mansão por quase 6 milhões de reais pelo senador Flávio Bolsonaro, revelada nesta semana pelo Antagonista, fez ressurgirem as suspeitas sobre o enriquecimento do filho 01 do atual presidente. Assim como Lulinha, Flávio é acusado de usar seus próprios negócios – no caso, transações imobiliárias – para lavar dinheiro proveniente de malfeitos. Uma tese que se for comprovada mostrará que a sua evolução patrimonial é fruto também de um outro tipo de “fenômeno“, típico de quem cresce sob a sombra do poder.

A mansão no Lago Sul, bairro nobre de Brasília, é o ápice de uma escalada nebulosa de Flávio no setor imobiliário. Com mais de mil metros quadrados de área construída, quatro suítes amplas – uma delas com hidromassagem –, academia, brinquedoteca, piscina e spa com aquecimento solar, o imóvel de luxo foi a 21ª transação feita pelo senador desde que ele assumiu seu primeiro mandato como deputado estadual no Rio de Janeiro, em 2003, quando declarava ao fisco possuir apenas um Gol 1.0 no valor de 25,5 mil reais. São várias as suspeitas que pairam sobre a nova aquisição do filho 01 de Bolsonaro, feita logo depois de ele ser denunciado pelo Ministério Público fluminense pelo desvio de 6,1 milhões de reais da Assembleia Legislativa do Rio, no suposto esquema de apropriação de parte do salário de assessores de seu antigo gabinete, muitos deles fantasmas – a gerência do rachid era tarefa do notório Fabrício Queiroz. Segundo a denúncia dos promotores, o dinheiro arrecadado foi lavado na loja de chocolates da qual Flávio foi sócio por cinco anos e na compra e venda de apartamentos e salas comerciais no Rio. Ele nega.

A compra da mansão por Flávio e pela mulher, a dentista Fernanda Bolsonaro, foi registrada no dia 29 de janeiro em um cartório de Brazlândia, cidade-satélite localizada a cerca de 45 quilômetros de Brasília, pelo valor de 5,97 milhões de reais. Na matrícula do imóvel, à qual Crusoé teve acesso, consta que 2,87 milhões de reais foram pagos com recursos próprios do senador, e 3,1 milhões por meio de um financiamento obtido junto ao Banco de Brasília, o BRB, controlado pelo governador Ibaneis Rocha, do MDB, aliado do clã Bolsonaro. Embora esteja às voltas com a Justiça, Flávio não enfrentou dificuldades para aprovar o empréstimo na instituição presidida por Paulo Henrique Costa, afilhado político do senador Ciro Nogueira, do Progressistas, um dos líderes do Centrão no Congresso que ganhou o apelido de 05 em razão de sua proximidade com Bolsonaro. O valor foi parcelado em 30 anos com uma taxa de juros de 3,65% ao ano, o que resulta em uma prestação mensal de 18,7 mil reais, metade da renda declarada pelo 01 e por sua mulher na escritura do imóvel. Segundo o simulador de financiamento do banco, o casal teria que ter uma renda 27% maior para conseguir o financiamento nas exatas condições que Flávio conseguiu. O BRB sustenta que foi uma “operação normal”, com “taxa de mercado”.

Reprodução/InstagramReprodução/InstagramFlávio e Fernanda: prestação de financiamento equivale a metade da renda declarada do casal
O ponto mais intrigante a ser esclarecido, porém, está justamente na parcela quitada por Flávio Bolsonaro com recursos próprios, os 2,87 milhões de reais. A mansão, encravada em um terreno de 2,5 mil metros quadrados, próximo ao Lago Paranoá, pertencia à RVA Construções e Incorporações, do empresário brasiliense Juscelino Sarkis. Ele apresentou ao Antagonista os extratos de três transferências bancárias feitas por Flávio entre os dias 23 de novembro e 11 de dezembro do ano passado que somam apenas 1.090.000 reais. Em nota oficial distribuída à imprensa na quarta-feira, 3, os advogados de Sarkis afirmam que foram pagos 4.190.278,30 reais, valor que que corresponde à soma das três TEDs feitas por Flávio com os 3,1 milhões financiados pelo BRB, que foram liberados no dia 2 de fevereiro. Isso significa que, entre o que registra o documento oficial como valor quitado por Flávio com recursos próprios e os comprovantes apresentados pelo empresário, há uma diferença de 1,78 milhão de reais. Esse valor foi pago por Flávio? Como? Se não, por que não há qualquer menção a parcelas em aberto nos documentos que registram a transação? Estranho.

Na nota distribuída à imprensa, os advogados afirmam apenas que “até o presente momento todos os termos contratados têm sido devidamente adimplidos” pelo senador, mas não fazem nenhuma menção ao valor restante. Procurado por Crusoé, Flávio não se manifestou a respeito. Juscelino Sarkis também não. Em uma das muitas coincidências do eixo que liga poder e dinheiro em Brasília, Sarkis é namorado de uma juíza, Cláudia Silva de Andrade, que entre 2018 e 2019 trabalhou no gabinete do ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça. Foi Noronha quem puxou a fila do julgamento que, na semana passada, resultou na anulação da quebra dos sigilos bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro e de outras 94 pessoas físicas e jurídicas investigadas pelo MP do Rio no caso do rachid na Alerj. A decisão joga no lixo algumas das principais provas levantadas contra o senador. Ironicamente, foi por meio da quebra de sigilo que os investigadores puderam saber exatamente como o filho 01 de Bolsonaro fazia para quitar os imóveis negociados no período em que foi deputado estadual.

O curioso é que foi o próprio Flávio quem deu o primeiro passo para ligar a aquisição da mansão em Brasília a essas transações antigas investigadas pelo Ministério Público. Em nota oficial, logo após o Antagonista revelar a compra da nova casa, ele afirmou que pagou parte do valor com o dinheiro obtido com a venda de um imóvel que possuía no Rio. Trata-se de um apartamento avaliado em 2,5 milhões de reais na Barra da Tijuca que, ao menos até esta semana, seguia em nome de Flávio – ele sustenta que não houve tempo hábil ainda para registrar oficialmente a transação. De acordo com os promotores, o apartamento foi adquirido pelo filho do presidente em 2014 mediante uma série de pagamentos suspeitos. Quinze dias antes de ser descontado um cheque de 50 mil reais dado por Fernanda Bolsonaro como sinal ao vendedor, a conta dela recebeu 20 mil reais em dinheiro vivo, em depósitos fracionados. O próprio senador, segundo os promotores, realizou uma sequência de depósitos em espécie no valor total de 30 mil reais na conta do vendedor, para quitar a aquisição de mobiliários – isso antes mesmo da formalização do contrato. O apartamento, próximo à praia da Barra, foi adquirido depois de outra transação suspeita, envolvendo duas quitinetes em Copacabana. Os imóveis foram comprados em 2012 por Flávio pelo preço de 310 mil reais, valor abaixo do de mercado, e vendidos um ano depois por 1,1 milhão de reais, uma incrível valorização de 262%. Os investigadores foram mais além: com a quebra do sigilo bancário, descobriram que Flávio fez dois depósitos de 638,4 mil reais em espécie na conta do vendedor.

Reprodução/Facebook/Flávio BolsonaroReprodução/Facebook/Flávio BolsonaroQueiroz foi à inauguração da loja de chocolates de Flávio, em 2015
Todas essas informações vieram a público em junho de 2020, quando a polícia prendeu Fabrício Queiroz. Ele estava escondido na casa do advogado de Frederick Wassef, então defensor de Flávio e do próprio presidente da República. Tudo foi devidamente esmiuçado na denúncia por peculato, lavagem de dinheiro e associação criminosa ajuizada contra o senador, o ex-assessor e mais 15 pessoas, em novembro passado. A acusação formal e a superexposição de Flávio e de seus negócios, porém, não foram empecilho para executar mais uma transação imobiliária, a mais cara entre todas que ele realizou até hoje. A repercussão da aquisição da mansão constrangeu até assessores do Palácio do Planalto e virou objeto de questionamentos de parlamentares da oposição, que querem levar o caso para o Conselho de Ética do Senado. A transação já foi comunicada ao Conselho de Controle de Atividade Financeiras, porque Flávio é considerado uma pessoa politicamente exposta – por mais que o Coaf esteja sob fogo cerrado justamente por ter exposto as antigas movimentações de Flávio, bancos e cartórios são obrigados a reportar operações financeiras relevantes envolvendo ocupantes de cargos públicos. A nova compra mostrará em que medida o órgão, vinculado ao Ministério da Economia, está desempenhando o seu papel. Em condições normais de temperatura e pressão, como Flávio já era investigado por suas transações imobiliárias, seria natural que o Coaf transmitisse as informações aos órgãos de investigações, como a polícia e o próprio MP.

A loja de chocolates de Flávio virou um capítulo à parte na investigação dos promotores fluminenses, que mantiveram aberto um inquérito para apurar se o senador usou a franquia da rede Kopenhagen que ele abriu em 2015, em um shopping na Barra da Tijuca, para lavar dinheiro desviado da Alerj. Na quebra de sigilo do estabelecimento, os promotores descobriram que a loja recebeu 1,7 milhão de reais em depósitos em dinheiro vivo ao longo de quatro anos – os depósitos, estranhamente, ocorreram em um período em que os pagamentos com o uso de cartões estavam em franca ascensão no país e as transações em espécie, em franca decadência. As suspeitas sobre a origem ilícita dos valores foram reforçadas por uma “coincidência“: os valores depositados na conta bancária da Bolsotini, razão social da loja de Flávio, ocorreram no mesmo período em que Fabrício Queiroz recolhia uma parte dos salários dos assessores do gabinete de Flávio na Assembleia. No início deste ano, o senador vendeu a franquia, que tinha capital declarado de 100 mil reais.

Considerado o mais político dos filhos de Bolsonaro, desde que chegou ao Senado, em 2019, Flávio é frequentador assíduo dos convescotes que ocorrem nas portentosas casas de empresários, políticos e lobistas de Brasília. O novo dono da mansão no Lago Sul, que no passado se destacou por condecorar policiais militares ligados à milícia no Rio, hoje senta-se com empresários milionários interessados em negócios com o governo de seu pai – como Crusoé mostrou, em um desses episódios ele se reuniu com representantes da concessionária do Aeroporto de Viracopos – e também indica ministros para cortes superiores. Embora a atuação de Flávio seja, na forma, um pouco diferente da de Lulinha, os primogênitos dos dois líderes populistas que polarizam o debate político nacional carregam consigo o gosto pela vida de luxo sustentada pela máquina pública. O 01, agora, tem até um quartel-general à altura do seu papel. O mais novo Ronaldinho de Brasília também é um fenômeno, reconheça-se.

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