RuyGoiaba

Novíssimo tolicionário da língua portuguesa

05.03.21

“Tolicionário” é a tradução de Augusto de Campos para o “sottisier” de Gustave Flaubert. O autor de Madame Bovary não conseguiu concluí-lo antes de morrer, em 1880: tratava-se de uma coleção de citações idiotas tiradas das obras de escritores famosos. Hoje, geralmente é editado com o Dicionário das Ideias Feitas, sátira dos lugares-comuns mais em voga na França do século XIX, publicada 30 anos após a morte do escritor francês, com base em suas notas.

Tenho para mim que Flaubert não conseguiria concluir seu tolicionário nem se tivesse vivido 300 anos: ele está sendo atualizado todo dia, talvez a cada segundo, e hoje — graças às maravilhas da tecnologia que nos deu a internet, as redes sociais e o WhatsApp — é ainda mais fácil as pessoas serem cretinas: basta apertar um botão. E nas redes elas ainda têm o reforço positivo (na forma de coraçõezinhos e likes) de seguidores ainda mais burros: tudo converge para que a produção diária de burrice seja torrencial, caudalosa, impossível de catalogar.

Eu mesmo escrevi em 2011, para uma revista chamada Dicta & Contradicta — que você aí não leu, mas asseguro que era coisa fina, com a exceção do meu cantinho meio bagunçado e cafona por lá —, um “novo tolicionário da língua portuguesa” que era só a pontinha de um iceberg de clichês capaz de afundar inúmeros Titanics. O texto falava de chavões do esporte (o “fantasma do rebaixamento”), do jornalismo (os “moralistas de plantão”, com atendimento 24 horas, suponho) e da cultura (“releitura” de obras “seminais”). Passados dez anos, acho que já dá para fazer uma espécie de novíssimo tolicionário — que ficará obviamente desatualizado ainda antes de eu pôr o ponto final nesta coluna.

Sei que vocês não curtem muito se manifestar por aqui, mas faço o convite mesmo assim: fiquem à vontade para sugerir verbetes adicionais nos comentários. O tolicionário, afinal, é uma grande obra coletiva. Vamos lá:

– Pensar fora da caixa

Dei-me ao trabalho de fazer uma busca nas redes por esse esplêndido clichê do coaching e juro que não encontrei quase ninguém que não estivesse usando a expressão A SÉRIO. Felizmente, a busca também retornou algumas fotos de gente fazendo a pose do Pensador de Rodin do lado de fora de alguma agência da Caixa Econômica Federal, que é o único comentário que esse lugar-comum merece. Não consigo deixar de imaginar Jack, o Estripador, acondicionando uma de suas vítimas dentro de uma caixa de presente e dizendo “pensa fora da caixa agora, palhaço”, antes de fechar a tampa e arrematar com um laço caprichado.

– Endereçar a pobreza extrema

Muitos dos possíveis verbetes de um tolicionário no Brasil de hoje são traduções ineptas do inglês, inclusive o “think outside the box” do parágrafo acima. Mas essa versão Herbert Richers do verbo “address” — que tem traduções facílimas em português, como “enfrentar”, “tratar de” ou “lidar com” — é especialmente irritante: Luciano Huck, esse eterno possível candidato ao Planalto, é um que volta e meia aparece nas redes dizendo que o Brasil precisa “endereçar a pobreza extrema”. Cheguei a perguntar no Twitter para qual CEP Huck pretendia enviar a pobreza extrema e se era via Sedex; ainda não obtive resposta.

– Desconstruir, deslegitimar, ressignificar

O Brasil, ou pelo menos a parte considerável dele que assiste ao BBB, experimentou recentemente uma overdose desses conceitos-clichês da academia por obra e graça de Lumena, a militante eliminada pela votação do público nesta semana. Quem frequentou esses ambientes nada recomendáveis, porém, sabe que o desconstruir, o ressignificar e o deslegitimar — assim como essa ridícula mania francesa de transformar verbos em substantivos — estão na moda há muito tempo. Jacques Derrida não morreu: sofreu desconstrução epistêmica das funções vitais, mas seu fantasma continua por aí, todo serelepe.

– “Tratamento precoce” da Covid-19

Não existe, o que não impede o Imbecil Lombrosiano do Planalto e seu gado de irem atrás de todo tipo de “remedinho milagroso” (cloroquina, ivermectina, spray nasal) para não ter de lidar com as duas únicas coisas que comprovadamente diminuem a incidência da Covid-19, lockdown e vacina. Queria escrever aqui algum trocadilho com “imunidade de rebanho”, mas o problema do Brasil é talvez pior: não ser imune AO rebanho de idiotas. Como já disse o sempre citável comediante britânico Ricky Gervais, “quando você morre, você não sabe que está morto; quem sofre são os outros. É a mesma coisa quando você é idiota”. Burrice não dói, mas mata — e, infelizmente, não apenas aqueles que a exercem.

***

A GOIABICE DA SEMANA

Pode o filho do presidente da República comprar uma casa de 6 milhões de reais com entrada muito acima de seu patrimônio declarado, com renda familiar menor que o mínimo exigido pelos bancos para um financiamento desse tamanho e juros que nem a sua mãe cobraria, se ela emprestasse dinheiro? Claro que pode, para os aplausos e zurros entusiasmados dos bolsonaristas: se Lula tinha o seu “Ronaldinho”, por que Jair Bolsonaro não pode ter o seu, ora essa? Se há uma coisa que jamais precisará de atualização é aquela definição de Ivan Lessa: o brasileiro é um povo com os pés no chão. E as mãos também.

Pedro Ladeira/FolhapressFoto: Pedro Ladeira/FolhapressO “Ronaldinho” de Bolsonaro: haja chocolate para comprar casa de R$ 6 mi

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