MarioSabino

Me engana, me bate, que eu gosto

05.03.21

Estou nas últimas páginas de um romance intitulado Cadernos de uma Submissa Provinciana, da autora belga Caroline Lamarche. É perturbador porque se trata exatamente disso, dos registros minuciosamente gráficos da relação entre uma masoquista e um sádico. Não há jogo simplesmente erótico, mas sevícias extremas a que a personagem se sujeita e das quais extrai o prazer de ser anulada como um corpo desprovido de qualquer essência. Ela e o seu seviciador têm um contrato que, de verbal, é transposto para um acordo escrito pelo qual ele pode fazer praticamente tudo com a submissa, como se cumprisse o negativo de uma certidão de casamento. Por meio da dor que lhe é infligida pelo outro, ela busca fugir de si mesma — e o seviciador também procura escapar de si próprio ao aplicar os castigos à sua presa. Ela é a Raposa e ele, o seu Mestre. Perder os nomes próprios faz parte do processo.

A literatura francesa, na qual estão incluídos os autores belgas da Valônia, é pródiga em obras sobre o tema da servidão e correlatos, em diferentes planos. Desde o plano eminentemente político, como o Discurso da Servidão Voluntária, de Etienne de la Boétie, o meu amigo do século XVI para quem só existem povos escravos porque há os que estão dispostos a desempenhar esse papel, até o plano predominantemente sexual, como os contos proibidos do Marquês de Sade, cujo nome deu origem ao termo “sadismo”. Sade capitaneia uma geração de autores do século XVIII, entre os quais Choderlos de Laclos, autor do romance As Ligações Perigosas. No século passado, em complemento à lista, Georges Bataille enveredou pela tradição dos libertinos, mas com acentos próprios, ao publicar o romance História do Olho — que deixou furioso o senhor que viria a ser o meu primeiro sogro, depois que ele pegou a filha lendo o romance presenteado por mim. Mesmo os libertinos do século XVIII, porém, têm o fator político como pano de fundo das suas obras. Eles eram contra a monarquia absolutista, e nas suas peripécias literárias retratam a degradação de quem dominava.

Apesar da prodigalidade francesa no assunto, a palavra “masoquismo” é de origem austríaca. Deriva do sobrenome do nobre Leopold von Sacher-Masoch, que escreveu a novela A Vênus das Peles, baseada na sua experiência real com a escritora Fanny Pistor. Eles assinaram um contrato estabelecendo que Sacher-Masoch seria escravo sexual de Fanny durante seis meses (o eco desse contrato está no livro de Caroline Lamarche). Essa perversão foi batizada de “masoquismo” pelo psiquiatra Richard Krafft-Ebing, igualmente austríaco. De acordo com J. Laplanche e J.-B. Pontalis, autores do Dicionário da Psicanálise, Krafft-Ebing já havia notado uma ligação perigosa entre as perversões sádica e masoquista, sublinhada por Freud. Escreveu o Charlatão de Viena (a alcunha contém ironia): “Um sádico é sempre ao mesmo tempo um masoquista, o que não impede que o lado ativo ou o lado passivo da perversão possam predominar e caracterizar a atividade sexual que prevalece”. É importante deixar claro que não existe conotação moral na definição psicanalítica de perversão. É apenas uma variante da sexualidade, que se mantém legítima enquanto não ultrapassa limites.

Se você conseguiu ler este artigo até aqui e se está perguntando aonde quero chegar, explico: ao Brasil. Ao ler o livro de Caroline Lamarche e lembrar da literatura libertina da qual o seu romance é herdeiro, ocorreu-me a ideia de que somos um povo sadomasoquista. Na nossa mobilidade social rápida e peculiar, dominadores de hoje eram dominados de ontem e dominados atuais serão dominadores de amanhã. Eles apenas mudam da posição masoquista para a sádica, o que representa a manutenção da mesma perversão. Há um aspecto psicossocial na certeza — na esperança — de que qualquer um que chegar ao poder repetirá o que vem sendo feito desde sempre, e esse aspecto está no âmbito da perversão. O nosso sistema escravocrata interior não foi abolido, expandiu-se. Independe das etnias, é nacional.

Permanecemos escravos de nós mesmos, sob o jugo de senhores que, ao cumprir o trajeto entre a senzala e a casa-grande sociais, apenas reafirmam o nosso sadomasoquismo geral. Como não ver esgares sádicos na maneira como ministros do STF usam e se referem às mensagens roubadas da Lava Jato, uma operação que poderia ajudar a nos resgatar do calabouço secular? Como não ver sevícias infligidas prazerosamente à nação nas votações noturnas do Congresso que contrariam avanços institucionais? Como não ver uma forma de prazer perverso na maneira como os diversos presidentes da República engabelaram o país, e que atingiu o seu paroxismo no sociopata que ora é inquilino do Planalto e literalmente asfixia com seus instrumentos de poder?

Diante da nossa atitude inerte em relação aos sádicos, como não concluir que há gozo masoquista da nossa parte? Um gozo que subjaz à nossa ignorância e a perpetua? Um gozo que nos faz apenas gemer? Como não ver na nossa resignação, na nossa passividade, quebrada por raríssimos momentos de reação, comparáveis às breves rebeliões da Raposa contra o Mestre, o prazer masoquista de quem se deixa chicotear, algemar, maltratar, roubar, escarnecer? Somos submissos provincianos, a nossa única identidade real é a submissão, eis a luz que se acendeu durante a leitura do romance de Caroline Lamarche. Só a perversão psíquica explica a perversidade sociopolítica brasileira. Essa perversão cresceu e se multiplicou, dada a falta de freios, e ultrapassou limites, passando a ser imoralidade contínua em todas as esferas.

Sem o arsenal psicanalítico, armado tão-somente de história, Etienne de La Boétie indagou: “Então, que monstro é esse que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega-se ter feito, e a língua se recusa a nomear?” . O monstro, para ele, é a servidão voluntária. Mas o que a sustenta está muito além do que La Boétie seria capaz de formular no seu tempo. É o sadomasoquismo. No Brasil, ele se mistura de tal forma ao caráter nacional, que achamos ser a nossa única forma de existência (ou de não existência). E da qual, sim, auferimos um prazer imenso, não importa o lado em que estejamos. Somos perversos mesmo quando somos vítimas, porque somos vítimas de nós próprios através do outro que nos domina. Me engana, me bate, que eu gosto.

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