Alan Santos/PRBolsonaro discursa nesta quinta em Goiás: ele continua negligenciando a gravidade da pandemia

Inferno à brasileira

O recrudescimento da pandemia e o iminente colapso no sistema de saúde do país mostram que os nossos governantes pouco ou nada aprenderam ao longo de um ano de sofrimento. Enquanto eles se engalfinham, brasileiros morrem em ritmo assustador
05.03.21

Uma tabela com dados orçamentários descontextualizados e imprecisos quase deflagrou uma guerra federativa no país nos últimos dias. As informações com os repasses do governo federal para os 26 estados e o Distrito Federal foram publicadas no domingo, 28, nas redes sociais de Jair Bolsonaro, e desencadearam um levante inédito de governadores contra a inação do Palácio do Planalto no combate à pandemia. O motim, que incluiu até políticos bolsonaristas, colocou o presidente sob pressão. Bater na tecla enganosa de que o governo federal fez repasses trilionários da União para as unidades da federação é a nova estratégia de comunicação de Bolsonaro para se esquivar da culpa pela gestão desastrosa da crise sanitária. O governo tenta se eximir das suas responsabilidades, dizendo que Brasília repassou uma dinheirama para os governadores – a artimanha anterior, já superada, consistia em culpar o Supremo Tribunal Federal, que deu aos governantes locais poderes para decidir sobre medidas de isolamento social. As transferências alardeadas como um ato de benevolência federal, entretanto, são obrigatórias.

O estratagema presidencial de empurrar para os governos estaduais a culpa pelo recrudescimento da pandemia – o país vive hoje o pior momento da tragédia desde que o vírus chegou por aqui – fez governadores, independentemente de partido e posição ideológica, se unirem para dar uma resposta enfática a Bolsonaro. Com os serviços de saúde à beira de um colapso em vários estados e em Brasília, e sob críticas do empresariado pela decretação de medidas mais restritivas, eles agora exigem que o presidente da República assuma seus próprios deveres. Querem uma coordenação nacional da crise, cobram a liberação de recursos para a abertura de novos leitos de UTI e, principalmente, pressionam por mais proatividade do Planalto na compra de vacinas contra a Covid-19. “Em meio a uma pandemia de proporção inédita na história, agravada por uma contundente crise econômica e social, o governo federal parece priorizar a criação de confrontos, a construção de imagens maniqueístas e o enfraquecimento da cooperação federativa essencial aos interesses da população”, afirmaram 19 governadores em uma carta-protesto que virou o fato político da semana.

Mateus Bonomi/Agif/FolhapressMateus Bonomi/Agif/FolhapressA visita dos governadores à União Química: por ora, só lobby
O documento, em tom altamente crítico, foi só a primeira jogada do grupo, que adotou uma postura midiática para amplificar a pressão, com visitas a indústrias farmacêuticas e reuniões com congressistas, como o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. O movimento irritou Jair Bolsonaro, mas o presidente teve de disfarçar a contrariedade para evitar novos confrontos. Na quarta-feira, 3, questionado sobre o assunto, ele tentou baixar o tom: “Foi liberada uma quantidade enorme de recursos no ano passado. Não quero culpar ninguém de nada, nem desconfiar de ninguém. Mas foram recursos vultosos”. Como todas as suas decisões têm se guiado pela bússola da eleição de 2022, o presidente se exasperou de forma peculiar com o protagonismo do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, do PSDB, na coordenação da revolta. O tucano gaúcho foi quem elaborou o texto da carta. Os demais sugeriram ajustes. Houve consenso de que o texto deveria ser didático, com explicações de que os valores divulgados pelo presidente incluem obrigações constitucionais, como os fundos de participação dos estados e municípios, os repasses para a educação básica e até os royalties de petróleo. Leite, que tenta se colocar como opção a João Doria como o candidato presidencial dos tucanos, ainda subiu o tom em um pronunciamento. “Um líder na posição dele (de Bolsonaro), que despreza os cuidados sanitários e despreza a sua gente, buscando algum proveito político, infelizmente está matando“, disse.

Os governadores estão muito unidos desde antes da pandemia, porque o estilo do presidente Bolsonaro exigiu uma concertação maior entre nós. Agora, o que estamos buscando é ampliar a aproximação com o Congresso e com o STF, para podermos ter aliados no enfrentamento da pandemia”, afirma o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, do PSB. “Continuamos em busca de interlocução com o Ministério da Saúde, mas como o governo federal tem posições muito contraditórias com relação à Covid, precisamos de outros aliados para enfrentar esse recrudescimento da pandemia. Vamos passar de 2 mil mortos (diários) nos próximos dias, é como se uma bomba atômica caísse sobre algumas cidades”, emenda. Na última terça-feira, 2, governadores participaram de um almoço com o presidente da Câmara, Arthur Lira, para discutir o orçamento para este ano. A principal demanda foi a liberação de 14 bilhões de reais adicionais para despesas com saúde. Em seu melhor figurino governista, Lira disse que não é hora de “apontar os dedos uns contra os outros” e defendeu a união para o combate à pandemia, sem explicar como seria possível uma harmonia federativa diante da postura do presidente.

Eduardo Valente/iShoot/FolhapressEduardo Valente/iShoot/FolhapressUTI de hospital em Florianópolis: todos os leitos ocupados e alguns improvisados
A inação de Bolsonaro na condução de medidas contra a pandemia só é quebrada quando seu protagonismo está em risco: nesta semana, o Congresso aprovou um projeto de lei que autoriza os estados e municípios a negociarem vacinas diretamente com os laboratórios farmacêuticos. Poucas horas depois, o Ministério da Saúde anunciou a intenção de comprar 138 milhões de doses das vacinas da Pfizer e da Janssen. A lentidão na compra e distribuição dos imunizantes é um dos principais pontos de divergência no conflito entre Brasília e os estados. Ao mesmo tempo que pressionam o governo federal a comprar vacinas, os governadores tentam negociar diretamente com laboratórios, na tentativa de acelerar o processo de vacinação. Por enquanto, porém, os resultados não são animadores. Na última quarta-feira, 3, um grupo deles visitou em Brasília a fábrica da União Química, farmacêutica que tem acordo com a Rússia para a fabricação da Sputnik V no país. A vacina, que nem sequer tem previsão de ser aprovada pela Anvisa, talvez seja a que tem o maior número de políticos e lobistas trabalhando em seu favor – o que, em se tratando de Brasil, não deixa de ser um importante sinal de alerta. A visita teve poucos efeitos práticos. Os governadores ouviram apelos em favor da liberação do imunizante, mas não viram sinais de que o laboratório está mesmo pronto para produzi-lo em larga escala. A União Química, na verdade, nem sequer cumpriu os requisitos mínimos exigidos para que seu processo comece a andar na Anvisa.

Nesta quinta-feira, 4, Bolsonaro voltou a exibir seu negacionismo raiz e sua insensibilidade diante da tragédia. “Nós temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando? Temos que enfrentar os problemas. Respeitar, obviamente, os mais idosos, aqueles que têm doenças, comorbidades. Mas onde vai parar o Brasil se nós pararmos?”, disse, em um evento no interior de Goiás, ao criticar novamente as medidas de isolamento social. Depois, chamou de “idiota” quem defende a compra de mais vacinas e disse que não há onde comprar imunizantes para fornecimento imediato. “Só se for na casa da tua mãe“, afirmou, com a delicadeza que lhe é peculiar. Horas mais tarde, em sua live semanal, tentou ajustar o discurso e afirmou que, ainda neste mês, o Brasil terá “no mínimo” 20 milhões de doses de vacinas. Mais ou menos no mesmo horário, o Ministério da Saúde divulgava seu balanço diário: nesta quinta, o país ultrapassou a marca de 260 mil mortes provocadas pelo novo coronavírus. A semana foi trágica. Por dois dias seguidos, o Brasil bateu seu recorde diário de mortes por Covid-19 desde o início da pandemia. Quase 11 milhões de brasileiros já foram infectados. Especialistas alertam que este é o pior momento da crise, agravada pela disseminação de novas variantes do vírus. Dizem ainda que é o pior instante para as pessoas contraírem a doença, porque a rede hospitalar está próxima do colapso em vários estados – em diferentes regiões é grande a chance de não haver um leito de UTI disponível para quem precisar de cuidados especiais. Enquanto os políticos se engalfinham entre si, alguns negando o perigo evidente e outros, com razão, tentando buscar saídas, mas de maneira atabalhoada, os brasileiros esperam resultados concretos: vacinas para todos o quanto antes e medidas que possam ajudar a conter o descalabro. No inferno particular em que vive o país, uma dose de bom senso já seria um passo importante.

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