SergioMoro

Sobre mensagens, crimes e filmes

26.02.21

A regra da exclusão das provas ilícitas em processo, a denominada exclusionary rule, é uma criação das cortes judiciais americanas. Com base em uma interpretação da norma constitucional que veda buscas e apreensões genéricas ou arbitrárias, a Suprema Corte dos Estados Unidos passou a entender, em julgamentos como Weeks v. US, de 1914, ou Mapp v. Ohio, de 1961, que provas colhidas com violação de direitos fundamentais não poderiam ser admitidas nos processos criminais. O argumento, em resumo, é de que o estado não pode incentivar o desprezo à lei a pretexto de combater o crime.

O Brasil chegou mais tarde nesse debate. Foi apenas na Constituição Federal de 1988 que se estabeleceu expressamente que provas ilícitas não seriam admitidas em processos. Apesar da introdução tardia na legislação, a jurisprudência dos nossos tribunais passou a seguir estritamente a regra, mesmo em casos nos quais os crimes processados eram atrozes ou reprováveis.

Cito um caso emblemático. Decisão de 21 de junho de 2002 do ministro Celso de Mello, do STF, na qual ele rejeitou que provas fotográficas de crime de pedofilia que tinham sido furtadas de um consultório odontológico e depois entregues à polícia pudessem ser admitidas como provas contra o titular do consultório (RE 251.445).

Outras decisões, de exclusão de provas ilícitas em processos, podem ser encontradas à profusão na jurisprudência do STF e de outros tribunais. Às vezes, até por muito pouco foram anuladas complexas investigações policiais sobre crimes graves, com discussões controversas sobre a ilicitude da prova – por exemplo aquelas que resultaram na anulação da Operação Castelo de Areia ou da Satiagraha.

Faço essa introdução porque se cogita, atualmente, utilizar supostas mensagens obtidas por hackers em dispositivos celulares de procuradores da República para anular condenações e processos da Operação Lava Jato por crimes de grande corrupção. Mais do que isso, foram verificadas recentemente algumas iniciativas para utilizar as mensagens para investigar os procuradores e outros agentes públicos.

A não ser que se rasgue a jurisprudência até o momento consolidada das cortes brasileiras, essas mensagens não podem ser utilizadas para qualquer finalidade. Ainda que as mensagens estejam atualmente em poder da Polícia Federal em decorrência das investigações realizadas contra os hackers, isso não significa que as provas perderam o vínculo com o crime de violação dos aparelhos dos procuradores da República.

As supostas mensagens têm sido divulgadas pelos advogados de um condenado por corrupção e por parcela da imprensa com extremo sensacionalismo e com narrativas fantasiosas. É notório que, na praxe jurídica brasileira, o juiz recebe pessoalmente o procurador da República e o delegado de polícia, assim como recebe o advogado de defesa, sem estar necessariamente presente a parte contrária, e não é incomum haver diálogos nessas ocasiões, sem que se tenha essa prática como ilícita ou imprópria ou sem que esses encontros sejam vistos como causa de suspeição.

Isso acontece todos os dias nos foros da Justiça e, inclusive, nos tribunais superiores. Então, mesmo abstraindo a origem ilícita das mensagens, a mera existência delas não prova nada e nem pode ser invocada como causa de nulidade. Se puderem ser invocadas com causa de nulidade, então devem ser cotejadas com cada causa. Houve alguma prova fraudada ou forjada contra algum acusado? Há mensagens que denotam motivações político-partidárias ou espúrias nos processos? Houve ocultação de provas que poderiam resultar na absolvição de algum acusado? As respostas são todas negativas para a frustração dos corruptos e de seus amigos.

A hipótese de conluio entre juiz e Ministério Público é desmentida pelas estatísticas objetivas, com cerca de 21% de absolvidos, inclusive de ex-aliados do ex-presidente Lula e dele mesmo, parcialmente, em uma das ações penais, e também pelo indeferimento de dezenas de requerimentos da polícia e dos procuradores. Está em curso a construção, por alguns advogados de defesa, de uma narrativa falsa e que é destinada a anular condenações por crimes de corrupção cometidos por pessoas culpadas, e não por inocentes.

Não tenho nenhum interesse pessoal nesses processos. Já não estou no Judiciário e minhas responsabilidades com a Operação Lava Jato já se esgotaram. Mas ela, a Lava Jato, foi um marco no combate à corrupção não só no Brasil, mas no mundo. O Brasil sempre foi considerado mundialmente como um país leniente com a corrupção. Até a cultura popular mundial reflete a impunidade como estilo brasileiro, com não poucos filmes estrangeiros sendo finalizados com criminosos ou foragidos da Justiça viajando com destino ao Brasil. Segundo uma jornalista brasileira que pesquisou o assunto, “uma sabedoria conhecida há muito tempo em Hollywood diz que, se você roubou um banco ou vendeu segredos de guerra para o inimigo, ou mesmo se tiver desviado fundos de alguma empresa, você deve fazer as malas e se mudar para o Brasil” (https://www.nytimes.com/2015/02/06/opinion/vanessa-barbara-brazil-the-outlaws-paradise.html).

Como disse o personagem de Tom Hanks no filme Um Dia a Casa Cai: “Don’t they have any laws in Brazil? Don’t they have any police?”. Nesse aspecto, aliás, o final da novela Vale Tudo, de 1989, com um personagem fugindo do Brasil para escapar da responsabilização de seus crimes, é pura peça de ficção. Não há por que fugir, como o ator Antônio Fagundes, um dos protagonistas da trama, reconheceu em entrevista na última edição da Crusoé. A Operação Lava Jato mudou, ainda que provisoriamente, o cenário. O Brasil passou a ser elogiado internacionalmente pelo combate firme à corrupção. Passou até a ser visto como um agente relevante no enfrentamento mundial à corrupção, já que a Lava Jato teve inúmeras repercussões internacionais, municiando, com provas, autoridades de outros países em processos anticorrupção.

A mudança foi tão expressiva que foi objeto de filmes e séries, com muitas liberdades criativas, mas com uma visão do Brasil mais positiva em relação ao combate à corrupção (Polícia Federal: A lei é para todos, O Mecanismo e The Laundromat). Então, o que está em jogo nessa nova tentativa de anulação de investigações e condenações com base em narrativas falsas e fundadas em mensagens roubadas não é apenas o passado, o presente e o futuro do combate à corrupção no Brasil, mas também a reputação internacional do país. A vida real de impunidade – que tanto inspirou negativamente a arte e deixou brasileiros sem esperanças – não pode continuar.

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