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Remédio contra a ignorância

O novo presidente da principal associação médica do Brasil, César Fernandes, diz que é preciso reagir institucionalmente à ideia de combater os efeitos do coronavírus com medicamentos ineficazes e perigosos
26.02.21

Desde o início da pandemia, as principais associações que representam os médicos brasileiros e os conselhos que fiscalizam o exercício da Medicina no país vêm defendendo a autonomia dos profissionais para prescrever remédios contra a Covid-19 livremente. Nem a posição consensual das mais respeitadas sociedades científicas mundiais, todas contrárias ao chamado “tratamento precoce”, foi suficiente para mudar a opinião das entidades médicas em defesa da liberdade ilimitada nas prescrições. O ginecologista César Eduardo Fernandes, que assumiu a presidência da Associação Médica Brasileira no mês passado, resolveu dar o primeiro passo para mudar essa postura. Desde que chegou ao comando da entidade, com cerca de 185 mil associados, ele passou a criticar a prescrição de medicamentos sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina e a ivermectina, indicados pelo Ministério da Saúde e pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. “Devemos respeitar a autonomia dos profissionais sempre. Mas a autonomia dos médicos não lhes dá o direito de receitar fármacos que não são eficazes e ainda têm potenciais eventos adversos”, disse Fernandes a Crusoé.

O presidente da AMB lembra que os médicos podem ser processados pelos próprios pacientes. “Vale um alerta: o médico pode receber punições não só de seu conselho profissional. Ele pode ser acionado civilmente também, e a Justiça tem critérios próprios nessa questão”, afirma. Fernandes lamenta que muitas discussões técnicas relacionadas à Covid-19 tenham descambado para o campo da ideologia. “A AMB, como qualquer associação, tem que conversar com os entes políticos, não pode se negar a ser propositiva, a ser crítica, mas ela não pode ter conflito de interesses ou vínculos partidários ou ideológicos, porque isso traz uma amarra que não é desejável”. Aos 70 anos, o ginecologista fez doutorado na Santa Casa de São Paulo e é professor da Faculdade de Medicina do ABC. Ele promete guiar as próximas ações da AMB a partir de critérios científicos, o que significa que, agora, as iniciativas do governo no combate à pandemia – e também a falta delas – passarão pelo escrutínio da maior entidade representativa dos médicos brasileiros. “Onde está o saber médico no nosso país? Está nas sociedades científicas. É nessa fonte que vamos beber e pautar as nossas decisões”. Nesta quinta-feira, fez um ano desde o primeiro registro oficial de Covid-19 no Brasil. Um dia antes, o país alcançou a triste marca de 250 mil mortos. A seguir, a entrevista.

A despeito dos números alarmantes da Covid, é comum ver pessoas sem máscaras nas ruas, aglomerações e festas clandestinas. A que o sr. atribui esse descaso com a pandemia?
Houve um decréscimo de casos e mortes entre outubro e novembro, que pode ter dado a ideia de que estávamos vencendo a pandemia e que o vírus iria perder a sua capacidade. E aí houve um arrefecimento das ações das autoridades, que desativaram unidades hospitalares, e da população, que fez uma leitura errada daqueles dados e relaxou nos cuidados. Todo mundo sabe que precisa usar máscara, higienizar as mãos, fazer distanciamento social — e nos casos suspeitos, fazer isolamento social. Mas esses cuidados foram deixados de lado pela população e aí houve a tragédia que estamos vendo. Nessa segunda onda, ou segundo pico, como queiram denominar, não há sinais evidentes de declínio, e os médicos entendem que o atual momento de elevação dos casos e mortes parece mais dramático do que o anterior.

O surgimento de variantes é uma das explicações para esse cenário?
Uma das possibilidades é que tenhamos cepas mais virulentas, com maior capacidade de transmissão. É bem possível que uma das razões seja essa. Já temos casos e isso não fica restrito a um ou outro estado. Ao que parece, os casos com essa nova cepa tendem a ter evolução mais grave. E isso fez com que tivéssemos um esgotamento de leitos não visto na primeira onda, pelo menos não de forma tão dramática. Não vimos esse caos na primeira onda. O caso mais dramático é o de Manaus, mas hoje temos situações muito próximas em outros estados que já exauriram sua capacidade de leitos de internação hospitalar.

De que forma a pandemia impactou a rotina dos médicos?
Os médicos estão exaustos. Por uma razão muito simples: as equipes são subdimensionadas, não estão sendo recompostas de acordo com o aumento da demanda. Então, os médicos estão atendendo muito mais e, muitas vezes, sem os insumos necessários. A maioria dos médicos relata sofrer ou conhecer colegas que sofrem com quadro de esgotamento físico e emocional, com noites mal dormidas, sensação de cansaço, de exaustão física, sintomas emocionais, perda de concentração, síndrome de burnout. Mais de 90% dos médicos conhecem uma ou mais pessoas com essa exaustão emocional. Eles deveriam ser acolhidos, deveriam ter tempo para se recuperar, e isso não acontece porque não há como repor esses profissionais. Os que atuam em UTIs, como os pneumologistas, têm conhecimento muito específico para atender esses pacientes com Covid.

Sem uma vacinação rápida e organizada, o caos de Manaus pode se repetir em outros estados?
Sem dúvida, a vacina é o maior alento que temos. Ela é eficaz para a prevenção da doença. O ideal seria que nós fizéssemos a vacinação em ritmo rápido. A vacinação lenta não é boa. É melhor do que não vacinar, mas quanto mais rápido fizermos a vacinação, maior é a chance de interrompermos a transmissibilidade. Felizmente, nas últimas semanas, observo que está havendo mais proatividade do governo em buscar soluções efetivas. Essas questões de saúde lamentavelmente foram partidarizadas, politizadas, e foram entremeadas de interesses que não deveriam estar no meio dessas discussões e dessas tomadas de decisões.

DivulgaçãoDivulgação“A autonomia dos médicos não lhes dá o direito de receitar fármacos que não são eficazes e ainda têm potenciais eventos adversos”
Desde que o sr. tomou posse, a Associação Médica Brasileira mudou de postura e passou a criticar abertamente o chamado “tratamento precoce” com medicamentos sem comprovação cientifica. Por quê?
Somos um novo grupo que entrou em oposição à gestão anterior, por discordarmos do direcionamento que a AMB havia dado com relação a vários assuntos. Reunimos pessoas do mundo acadêmico e associativo para que pudéssemos trazer a ciência para pautar nossas decisões, sem que nós politizemos, ou melhor, sem que ideologizemos as decisões da associação. A AMB, como qualquer associação que representa uma classe, tem que conversar com os entes políticos, não pode se negar a ser propositiva, a ser crítica, mas não pode ter conflito de interesses ou vínculos partidários ou ideológicos, porque isso traz uma amarra que não é desejável. Nós congregamos 54 entidades de especialidades, como cardiologia, clínica médica, pediatria, ortopedia, ginecologia, entre outras. Uma delas é a Sociedade de Infectologia, que sempre teve posicionamento claro com relação ao chamado tratamento precoce. E onde está o saber médico no nosso país? Está nas sociedades científicas. É nessa fonte que vamos beber e pautar as nossas decisões. E a realidade é que não há suporte ou boas evidências científicas para fazer tratamento precoce. Então decidimos nos posicionar no sentido de que o tratamento precoce é ineficaz, não é isento de efeitos colaterais e, portanto, não deve ser recomendado. Esse fato não nos alegra. Gostaríamos de saber que foi descoberto um tratamento precoce que reduz o número de mortes, o tempo de internação hospitalar, reduz as sequelas, e que pudéssemos dizer com confiança e embasados em boas evidências científicas que esse tratamento deve ser usado. Mas, infelizmente, não temos isso. Devemos respeitar a autonomia dos médicos sempre. Mas a autonomia dos médicos não lhes dá o direito de receitar fármacos que não são eficazes e ainda têm potenciais eventos adversos. O médico tem autonomia para fazer o seu juízo clínico, as suas hipóteses diagnósticas, e escolher no cenário de possibilidades terapêuticas aquela que, ao juízo dele, é a melhor para o paciente. A autonomia significa liberdade para tomar decisões, mas buscar as decisões que são as melhores. Não se pode confundir autonomia com liberdade para prescrever fármacos que não têm benefício e ainda trazem efeitos colaterais.

A maioria dos conselhos profissionais nos estados defende que os médicos possam prescrever esses medicamentos, como a hidroxicloroquina ou a ivermectina. Não deveria haver uma punição contra quem prescreve uma substância que pode ser danosa?
É importante esclarecer: nós da AMB temos como missão construir diretrizes, mas não nos cabe, não é da nossa alçada monitorar o exercício da profissão e eventuais deslizes éticos. Essa é uma prerrogativa do CFM, o Conselho Federal de Medicina, que é uma autarquia federal. Nós, como médicos, devemos ter respeito ao CFM, que não existe para defender os médicos, mas para defender a população. O conselho é um instrumento a favor da segurança do exercício médico para a população. Devemos respeitar a instituição e seus dirigentes, muito embora possamos ter divergências de posições. E nossa posição é muito clara: não recomendamos e achamos que os médicos não devem prescrever o tratamento precoce. O CFM não recomenda, mas entende que a autonomia do médico pode lhe dar a liberdade para prescrever esse tratamento. Eu tenho uma visão diferente. Estamos alinhados em vários aspectos com relação à boa assistência à população, em prol do bom exercício da Medicina. Mas a questão do chamado tratamento precoce é um ponto em torno do qual não conseguimos ainda construir um alinhamento.

Muitos médicos têm relatado em redes sociais casos de pacientes com efeitos colaterais graves, como hepatite medicamentosa e problemas cardíacos, em decorrência da hidroxicloroquina ou da ivermectina. Isso tem chegado até a AMB e há algo que possa ser feito para evitar casos semelhantes?
Quando recebemos alguma queixa que sugere a ocorrência de infração profissional no exercício da medicina, prontamente sugerimos que ela seja encaminhada a um conselho profissional para que seja apreciada, porque não nos cabe fiscalizar o exercício da profissão. Tenho notícias, sim, de casos como esses. E aqui vale um alerta: o médico pode receber punições não só de seu conselho profissional. Ele pode ser acionado civilmente também, e a Justiça tem critérios próprios nessa questão. É importante, assim, que os médicos fiquem atentos porque é possível que eles sejam processados na Justiça e os magistrados não se baseiem nos entendimentos dos conselhos.

Recentemente, o Ministério da Saúde lançou um aplicativo, o TrateCov, que orientava a prescrição de cloroquina até para bebês. Qual é a sua opinião sobre esse sistema?
De umas duas décadas para cá, a medicina ganhou inúmeros instrumentos tecnológicos, como aplicativos. O mundo digital hoje está bem inserido no exercício da medicina. Por exemplo, existe um sistema onde você insere informações como a idade da paciente, o número de filhos, a idade da primeira menstruação, se tem algum familiar com câncer de mama, se teve alguma mamografia com alguma alteração, e, no final, ele calcula o risco de a paciente vir a ter um tumor. Se o risco for muito elevado, é possível analisar medidas profiláticas, como a retirada de toda a glândula mamária. Esses aplicativos em si não são ruins. Eles podem auxiliar o exercício da profissão, embora a decisão seja sempre tomada solitariamente pelo médico que acompanha o caso. A decisão é dele, juntamene com seu paciente. O aplicativo não pode tomar decisão sozinho, ele é um instrumento diagnóstico. Mas existem aplicativos ruins e esse TrateCov foi um aplicativo infeliz. Tanto é que o CFM, e faço aqui um tributo a essa postura, recomendou que o Ministério da Saúde o retirasse do ar. Ele induzia a erro.

DivulgaçãoDivulgação“Deveriam vacinar todos os motoristas de ônibus antes do que eu, que sou médico, mas atuo em consultório”
No ano passado, o governo Jair Bolsonaro recontratou médicos cubanos, pelo programa Médicos pelo Brasil, o antigo Mais Médicos. Por que, agora, não houve reclamações e protestos por parte dos médicos brasileiros?
Temos uma posição muito clara: nós somos contra esse programa. Temos um número grande de médicos, inflado irresponsavelmente pela criação de inúmeras escolas médicas, sem a mínima condição de formar profissionais. A formação na Medicina tem uma especificidade, uma singularidade. Ela precisa de campus de ensino e docentes muito bem-preparados. Temos escolas fantásticas no Brasil, mas foi mais do que dobrado o número de escolas em localidades sem nenhuma estrutura. O Brasil tem cerca de 330 escolas médicas e é um dos países com o maior número de médicos proporcional à população. Isso foi uma irresponsabilidade. Quando todos estiverem formados, não vai haver postos para todos trabalharem. Nosso problema não é com relação à quantidade de médicos. O que temos que fazer é uma política de alocação de médicos, com carreiras bem delineadas, médicos de carreira pública, como ocorre no Judiciário. O magistrado é de carreira, ele não começa no Fórum João Mendes, em São Paulo, mas em uma cidade pequena e vai construindo sua carreira meritoriamente, sempre muito bem remunerado. No caso dos médicos, querem pegar um profissional de formação complexa e longa, e mandar ele para uma barraca no rio para ficar dois anos. Isso não é possível se não tivermos uma carreira sólida, bem-feita, remunerando adequadamente, dando condições de educação continuada, respeitando esses profissionais.

Na pandemia, houve um reconhecimento muito grande da população pelo trabalho prestado pelos profissionais de saúde…
Sim, temos visto os tributos prestados pela sociedade aos médicos pelo combate à Covid. As pessoas nos tratam como verdadeiros heróis, mas isso não tem nenhuma importância para os governantes. Entrevistamos 3.882 médicos e perguntamos: como a categoria é tratada pelos governantes? A grande maioria disse que o tratamento é péssimo. Perguntamos se as coisas vão melhorar depois da pandemia e a maioria acredita que não. Já haviam precarizado a profissão dos médicos algumas décadas atrás e isso só vai piorar. O governo não está preocupado com qualidade, mas com quantidade.

Desde o início da vacinação, ocorreram vários casos de pessoas que furaram a fila estabelecida pelo governo, a despeito da criminalização da conduta aprovada pelo Congresso. Na sua opinião, como deveria ser organizada essa fila?
Eu sou médico, tenho 70 anos de idade, mas não estou na linha de frente do combate à Covid. Eu não quis ser vacinado nos primeiros dias. Recusei. Não há demagogia, mas entendi que, embora pela idade eu possa ter fator de risco, tem muita gente com a minha idade que deveria ser vacinada pela mesma razão. Achei que não deveria ser vacinado naquele momento. Se fossem vacinar todos os extratos da população, tudo bem. Como ainda atendo pacientes em consultório, tenho alguma exposição a risco, mas não estou em uma UTI com pacientes com Covid, por exemplo. Agora, a universidade em que trabalho exigiu que eu tomasse para continuar trabalhando com alunos nos laboratórios. Então, me vacinei recentemente. Acho que cada um tem que fazer um exame de consciência. Há muitas profissões querendo passar na frente, mas muitas delas não estão na linha de frente. Acho que deveriam vacinar, por exemplo, todos os motoristas de ônibus antes do que eu, que sou médico, mas atuo em consultório.

Como o sr. analisa o crescente do movimento antivacina, alimentado por autoridades como o próprio presidente Jair Bolsonaro, que frequentemente questiona a segurança e a eficácia dos imunizantes?
Quem faz questionamentos que geram preocupação da população quanto à segurança e à eficácia da vacina é no mínimo um desinformado total. Ou um mal-intencionado lastreado por sua ignorância. Existem muitas fake news, hoje algumas pessoas dizem que não querem tomar vacina para não virar jacaré. As vacinas são seguras e eficazes, sim. E quem diz isso não sou eu, nem a AMB, mas é uma agência que é um patrimônio da população brasileira, a Anvisa. É uma agência séria, competente e com um corpo técnico que não está submetido a nenhum viés político e ideológico. A Anvisa deve ser ouvida em todos os casos para atestar sobre a segurança e a eficácia das vacinas. Lamentavelmente, há profissionais de saúde que lançam fake news a esse respeito e autoridades do Executivo que falam contra a vacina. A população fica à mercê dessa desinformação. Existe um percentual grande de pessoas que acaba influenciada lamentavelmente por essas versões quase criminosas sobre a vacina. É importante que se diga para a população que se vacinar é um ato de cidadania. Quando o indivíduo faz isso, ele protege a família, os amigos, os colegas de trabalho e os brasileiros como um todo. É um ato de nobreza, de grandeza.

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